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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Maria Barroso, uma árvore rija e acolhedora:

E ela voltou a fazê-lo. Levantou o dedo, tinha de dizer o que pensava. Estava a falar o representante dos Estados Unidos, a justificar a não assinatura do tratado contra as minas antipessoais, Otava, 1997. Quando o general se calou, Maria Barroso exclamou que aquela atitude era injustificável e arrancou uma enorme salva de palmas. Sem os votos dos Estados Unidos, da China e da Rússia, a convenção foi assinada por 162 países e proibiu o uso, o armazenamento, a produção e o transporte de minas antipessoais, determinou a sua destruição.
Nunca calava a indignação. Construiu-se no equilíbrio entre o que tinha de ser feito e o que ela achava que tinha de fazer. Cresceu nas dificuldades de uma família na qual recusar a ditadura causou estragos brutais, situações inimagináveis hoje, porque o regime do Estado Novo não tinha meias-tintas e prendia, deportava, tirava a possibilidade de trabalho e de uma vida normal aos que a combatiam.
Havia nela uma firmeza de princípios que não lhe dava espaço para hesitar, estava na sua natureza. Escolheu o teatro, um caminho difícil quando esse mundo era malvisto. Estudava na Faculdade de Letras de dia, à noite ia para a Companhia de Amélia Rey Colaço. Na única noite em que a mãe não a acompanhou, adormeceu no camarim e falhou uma deixa. Primeiro ficou aflita, depois avançou para o palco, no 3.º ato de Antígona, formosa e segura. Quando dizia poemas, ali estavam a voz da atriz e a convicção herdada da família. Quando discutia política, tinha opiniões fortes e não se coibia de defendê-las.
Amou um homem e não se escondeu à sombra dele. O regresso à fé católica não a afastou de nada do que lhe era essencial, pelo contrário. Com Mário, o filhos, os sobrinhos, os netos, o colégio criado pelo sogro, o partido que ajudou a fundar, ela era uma árvore rija e acolhedora. Duríssima se preciso fosse. Não era uma ex no que quer que fizesse, estava sempre lá. Citava uma frase que ouvira ao padre Feytor Pinto: se queres que alguma coisa seja feita, pede a quem tem muito que fazer. Criou a Fundação Pro Dignitate, porque se preocupava com os outros e era atenta e solidária.
Foi feliz no último dia em que esteve consciente, na festa de fim de ano do Colégio Moderno. Jantou em família, o clã que lhe era uma das razões de existir. Caiu, não deu importância a isso, e só porque insistiram foi ao hospital, elegante como sempre. Ficou internada por precaução, para fazer exames no dia seguinte. Serena, porque não tinha desperdiçado o tempo que viveu. Entrou de repente na noite escura e o corpo frágil demorou até perceber que estava na hora de fazer o que era preciso.
ANA SOUSA DIAS
Hoje no DN

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