Os conceitos de democracia e de Europa herdámo-los da Grécia da
antiguidade clássica. No dia 5 de Julho de 2015 – que privilégio, por entre a
asfixia da crise e dos seus discursos, assistir em directo a um tal evento
histórico! – a possibilidade de um projecto democrático europeu voltou a
ressurgir, a possibilidade sublinhe-se, pela votação do povo grego.
Afirmar isto de modo nenhum significa um apoio à política do Syriza.
Politicamente, estes cinco meses foram de jogos de esconde, promete e adia, de
um radicalismo verbal - de que o expoente é Yannis Varoufakis, o
“desengravatado” que afinal é um distinto exemplo de “esquerda caviar”, como se
viu na reportagem fotográfica na “Paris Match” - afinal simétrico desta
terrível rarefacção de pensamento e discurso característica da casta
oligárquica das instituições europeias.
Mais: a germanofobia e o jogo chantagista com a aproximação a Putin
foram não só perigosos como abjectos. Mais ainda, ponto fundamental que os
apoiantes do partido e de Tsipras cuidadosamente rasuram: até pela sua aliança
com um partido de direita nacionalista, os Gregos Independentes, o governo do
Syriza nada, mas nada fez no sentido da reforma do sistema clientelar que
durante décadas sustentou o duopólio Nova Democracia/Pasok ou da situação
simbólica mas também fundiária e tributária de privilégio da Igreja Ortodoxa,
inclusive contrária aos princípios de laicidade que são suposto reger os
Estados democráticos, e desde logo os que integram a União Europeia.
A história das responsabilidades da crise na Grécia é longa, e não se
reduz a situações de “privilégio” e muito menos a uma ausência de capacidade e
disposição produtiva, como foi repetido à saciedade num vergonhoso discurso de
ostracização daquele país, inclusive repetido até à véspera da votação por
Passos Coelho e Paulo Portas, sempre “mais troikistas que a troika”. Essa crise
é inseparável do regime de duopólio e de desordenadas contas públicas, mas
também do apoio activo a essa política por parte da banca internacional, que,
com os juros dos empréstimos, acabou por ser a grande e única beneficiária da
crise.
Toda essa história existe, não pode ser denegada, e tem profundas
consequências na situação actual do país. Todavia o desafio que representou o
referendo tem implicações de outra ordem para toda a Europa: aprecie-se ou não
o resultado - com a vitória surpreendentemente expressiva do Não – e o modo
como foi desencadeado o processo, o certo é que houve uma decisão inequívoca e
democrática. E legitimação democrática é justamente o que mais tem faltado numa
arquitectura política que vem sendo o de uma eurocracia, ao arrepio do projecto
europeu de Jean Monnet e Robert Schuman, de François Mitterrand, Helmut Kohl e
Jacques Delors.
Na tão esquecida Declaração de Leiken, que deu origem ao abortado
processo de Constituição Europeia, estava expressamente inscrito como um dos
objectivos “a aproximação dos cidadãos às instituições europeias” – o caminho
dos governos e da casta eurocrática tem sido exactamente o inverso.
A convocação do referendo pode também ter sido a derradeira cartada na
lógica da “teoria dos jogos” que é a especialidade de Yannis Varoufakis. Isso
pouco importa agora. O que sobremaneira há a assinalar é que na Grécia houve
uma decisão de voto popular, e que em concreto isso enuncia um Não às condições
impostas pelas ora designadas “instituições”, de resto em tudo coincidentes,
não pode deixar de ser dito, com as exigências do capital financeiro
internacional.
Há, é inegável, uma margem de ambiguidade característica do discurso de
Tsipras e do Syriza, mas isso não autoriza que expoentes da eurocracia comecem
a dizer, como já sucedeu, que a Grécia recusou a Europa e a Zona Euro. O que
concretamente se votou foram as condições impostas pelas “instituições” e
reforçadas na inacreditável chantagem a que se assistiu nestas semanas.
Independentemente de quaisquer simpatias políticas ou antes pelo contrário, é
elementar reconhecer que o governo do Syriza, se não está mandatado para fazer
a Grécia sair da zona euro ou da União Europeia, também não estava mandatado
para ceder às condições das “instituições”.
Não se comecem pois desde já a agitar fantasmas, mesmo que tendo bases
reais: as vagas populistas, xenófobas, eurocépticas e eurofóbicas que ocorrem
na Europa, de resto num larguíssimo espectro político, da Frente Nacional
francesa ao Podemos espanhol, passando pelos movimentos de Beppe Grillo na
Itália, de Nigel Farage no Reino Unido, pelo Fidesz de Viktor Orban no poder na
Hungria, pelos Verdadeiros Finlandeses ou pelo Partido do Povo Dinamarquês
(estes que, na sequência das recentes eleições, integram o governo, no caso dos
finlandeses, virão a integrar directa ou indirectamente a coligação
governativa, no caso dos dinamarqueses), etc., essa assustadora e heteróclita
vaga não é, sublinhe-se bem, não é, “A” beneficiária do resultado do referendo
grego, por efeitos colaterais que possa recolher. Isto porque a decisão
referendada lança um outro e tremendamente mais importante desafio: a partir de
hoje aceitam ou não os dirigentes europeus e internacionais que há uma
negociação tendo como premissa uma irrefutável decisão democrática?
AUGUSTO M. SEABRA 06/07/2015
No Público
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