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segunda-feira, 6 de julho de 2015

A democracia e a Europa voltaram a nascer na Grécia:

Os conceitos de democracia e de Europa herdámo-los da Grécia da antiguidade clássica. No dia 5 de Julho de 2015 – que privilégio, por entre a asfixia da crise e dos seus discursos, assistir em directo a um tal evento histórico! – a possibilidade de um projecto democrático europeu voltou a ressurgir, a possibilidade sublinhe-se, pela votação do povo grego.

Afirmar isto de modo nenhum significa um apoio à política do Syriza. Politicamente, estes cinco meses foram de jogos de esconde, promete e adia, de um radicalismo verbal - de que o expoente é Yannis Varoufakis, o “desengravatado” que afinal é um distinto exemplo de “esquerda caviar”, como se viu na reportagem fotográfica na “Paris Match” - afinal simétrico desta terrível rarefacção de pensamento e discurso característica da casta oligárquica das instituições europeias.

Mais: a germanofobia e o jogo chantagista com a aproximação a Putin foram não só perigosos como abjectos. Mais ainda, ponto fundamental que os apoiantes do partido e de Tsipras cuidadosamente rasuram: até pela sua aliança com um partido de direita nacionalista, os Gregos Independentes, o governo do Syriza nada, mas nada fez no sentido da reforma do sistema clientelar que durante décadas sustentou o duopólio Nova Democracia/Pasok ou da situação simbólica mas também fundiária e tributária de privilégio da Igreja Ortodoxa, inclusive contrária aos princípios de laicidade que são suposto reger os Estados democráticos, e desde logo os que integram a União Europeia.

A história das responsabilidades da crise na Grécia é longa, e não se reduz a situações de “privilégio” e muito menos a uma ausência de capacidade e disposição produtiva, como foi repetido à saciedade num vergonhoso discurso de ostracização daquele país, inclusive repetido até à véspera da votação por Passos Coelho e Paulo Portas, sempre “mais troikistas que a troika”. Essa crise é inseparável do regime de duopólio e de desordenadas contas públicas, mas também do apoio activo a essa política por parte da banca internacional, que, com os juros dos empréstimos, acabou por ser a grande e única beneficiária da crise.

Toda essa história existe, não pode ser denegada, e tem profundas consequências na situação actual do país. Todavia o desafio que representou o referendo tem implicações de outra ordem para toda a Europa: aprecie-se ou não o resultado - com a vitória surpreendentemente expressiva do Não – e o modo como foi desencadeado o processo, o certo é que houve uma decisão inequívoca e democrática. E legitimação democrática é justamente o que mais tem faltado numa arquitectura política que vem sendo o de uma eurocracia, ao arrepio do projecto europeu de Jean Monnet e Robert Schuman, de François Mitterrand, Helmut Kohl e Jacques Delors.

Na tão esquecida Declaração de Leiken, que deu origem ao abortado processo de Constituição Europeia, estava expressamente inscrito como um dos objectivos “a aproximação dos cidadãos às instituições europeias” – o caminho dos governos e da casta eurocrática tem sido exactamente o inverso.

A convocação do referendo pode também ter sido a derradeira cartada na lógica da “teoria dos jogos” que é a especialidade de Yannis Varoufakis. Isso pouco importa agora. O que sobremaneira há a assinalar é que na Grécia houve uma decisão de voto popular, e que em concreto isso enuncia um Não às condições impostas pelas ora designadas “instituições”, de resto em tudo coincidentes, não pode deixar de ser dito, com as exigências do capital financeiro internacional.

Há, é inegável, uma margem de ambiguidade característica do discurso de Tsipras e do Syriza, mas isso não autoriza que expoentes da eurocracia comecem a dizer, como já sucedeu, que a Grécia recusou a Europa e a Zona Euro. O que concretamente se votou foram as condições impostas pelas “instituições” e reforçadas na inacreditável chantagem a que se assistiu nestas semanas. Independentemente de quaisquer simpatias políticas ou antes pelo contrário, é elementar reconhecer que o governo do Syriza, se não está mandatado para fazer a Grécia sair da zona euro ou da União Europeia, também não estava mandatado para ceder às condições das “instituições”.

Não se comecem pois desde já a agitar fantasmas, mesmo que tendo bases reais: as vagas populistas, xenófobas, eurocépticas e eurofóbicas que ocorrem na Europa, de resto num larguíssimo espectro político, da Frente Nacional francesa ao Podemos espanhol, passando pelos movimentos de Beppe Grillo na Itália, de Nigel Farage no Reino Unido, pelo Fidesz de Viktor Orban no poder na Hungria, pelos Verdadeiros Finlandeses ou pelo Partido do Povo Dinamarquês (estes que, na sequência das recentes eleições, integram o governo, no caso dos finlandeses, virão a integrar directa ou indirectamente a coligação governativa, no caso dos dinamarqueses), etc., essa assustadora e heteróclita vaga não é, sublinhe-se bem, não é, “A” beneficiária do resultado do referendo grego, por efeitos colaterais que possa recolher. Isto porque a decisão referendada lança um outro e tremendamente mais importante desafio: a partir de hoje aceitam ou não os dirigentes europeus e internacionais que há uma negociação tendo como premissa uma irrefutável decisão democrática?

AUGUSTO M. SEABRA 06/07/2015
No Público

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