O cartaz com o rosto do ex-PM e os dizeres "José Sócrates
sempre" aposto à entrada de Lamego para o 10 de Junho terá sido pensado
como repto e jura, mas é sobretudo irónico. Afinal, pela primeira vez, dois dos
seus ministros iam ser condecorados: o recentemente desaparecido Mariano Gago,
responsável por uma pasta - Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - que o atual
governo extinguiu e cujo legado o próprio considerava estar a ser destruído
(sem que alguma vez tivéssemos ouvido o PR pugnar por ele), e Teixeira dos
Santos, que acompanhou Sócrates à frente das Finanças durante os dois mandatos,
sendo portanto o responsável pela política financeira que Cavaco tinha, na
tomada de posse, em março de 2011, arrasado de cabo a rabo.
Mas Teixeira dos Santos, recorde-se, foi o ministro que anunciou o
pedido de resgate através de um e-mail para um jornal. Ao condecorá-lo, Cavaco
não está só a lembrar que fez questão de não condecorar Sócrates: está a
distinguir o ministro cuja perceção pública é de que traiu o ex-PM. O silêncio
de PSD e CDS é igualmente significativo: os que em tempos acusavam Teixeira dos
Santos de ludibriar o país quanto ao défice parecem agora aprovar que seja
distinguido por serviços à Pátria.
É um notável dom de Sócrates, este, o de conseguir que tanto do que se
passa no país seja valorizado negativa ou positivamente em função da sua
relação consigo. Ante o processo de que é principal alvo, esta tendência foi
levada ao paroxismo. Qualquer pessoa que abra a boca para criticar a atuação da
justiça em geral e no caso em que é arguido em particular leva o labéu de
socrático ou, como escrevia ontem no Público João Miguel Tavares, inaugurando
uma nova categoria, de "simpatia por". Trata-se de quem quer, diz
JMT, que Sócrates seja ilibado "por dificuldade de prova" mesmo sendo
- é a propalada convicção do articulista - culpado sem remissão.
Ora se há coisa para a qual o processo Marquês tem servido é a de
iluminar aspetos menos conhecidos ou mais negligenciados do nosso sistema
judicial, da extensão inadmissível da prisão preventiva e dos critérios
incompreensíveis da sua aplicação às condições das prisões, passando por
disfunções já muito debatidas como a perversidade do segredo de justiça e a
arbitrariedade e opacidade das ações de juízes e MP - que podem chegar, como
frisava anteontem um mais do que insuspeito Pacheco Pereira na Sábado, à
possibilidade de "forçar provas" e condenar "por
convicção". Ser um ex-PM, e portanto alguém que foi responsável por medidas
de que agora é destinatário inconformado, a chamar-nos a atenção para as pechas
do sistema não pode constituir motivo para estas revelações serem
desqualificadas. O sistema judicial é - devia ser - muito mais importante do
que a simpatia ou a antipatia por Sócrates. Que num ano de legislativas estas
questões sejam tabu para os partidos, a começar pelo PS, é sinal de que a
doença de tudo reduzir ad Socratem está a dar cabo de nós.
FERNANDA CÂNCIO
Ontem no DN
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