«Refugiados nas afirmações politicamente correctas de circunstância —
“à justiça o que é da justiça”, “este é o tempo da justiça”, “todos são iguais
perante a lei”, “defendemos a separação de poderes”, etc. e etc. —, assustados
uns com as consequências eleitorais de defender Sócrates e avisados outros com
a necessidade de não melindrar os “justos” e assim atrair sobre si as atenções,
os nossos “agentes políticos”, como diria o dr. Cavaco, podem estar a pactuar
com uma situação irreversível e de consequências funestas para a democracia: o
momento em que o Estado de direito é substituído pelo Estado da magistratura.
Mas que Deus proteja todos e cada um de nós se tal vier a acontecer!
Como toda a gente de boa-fé, continuo sem saber se José Sócrates é
culpado ou inocente das suspeitas e suposições que contra ele foram levantadas
pelo Ministério Público. Tenho uma teoria — que fica muito aquém da teoria da
acusação mas também vai, pelo menos do ponto de vista ético, além da da defesa.
Mas a minha teoria, tal como o convencimento de todos os outros, num sentido ou
noutro, vale zero: a educação democrática e a experiência ensinaram-me que a
validade das acusações pendentes sobre uma pessoa, por maiores que sejam os
indícios sobre ela propagandeados, só se apura em julgamento, depois de ouvida
a acusação e a defesa, depois de produzidas as provas e analisado o seu
contraditório. E como o Estado de direito felizmente não engloba a noção de
julgamentos populares, seja por sondagens de opinião ou por primeiras páginas do
“Correio da Manhã”, estes pré-julgamentos públicos promovidos pelo MP, no que
chama casos “de especial complexidade”, não passam de uma indecente e desleal
forma de litigância que mandaria a decência, se coragem é exigir demasiado,
fosse denunciada como tal por aqueles que elegemos para defender o Estado de
direito. Eu esperei até ver a decisão sobre a manutenção da situação de prisão
preventiva de Sócrates, obrigatoriamente reanalisada seis meses após o seu
início — o tal “tempo da justiça”. Agora, já vi o suficiente e não me é
possível continuar calado. Sei que a minha posição é impopular, mas não sou
político e pagam-me para dizer, não para calar, o que penso. E tenho por mim
uma vantagem: não devo nada a Sócrates, rigorosamente nada — ao contrário de alguns
que tanto lhe devem e agora ficam calados ou até aproveitam para o pisar, como
o inultrapassável filósofo Carrilho. E acredito que a coragem da justiça não
consiste em acompanhar a opinião pública, mas, pelo contrário e se necessário,
julgar contra ela, obedecendo os juízes à lei e à sua consciência.
A manutenção de Sócrates em prisão preventiva é uma decisão que, em
termos pessoais, mais parece uma “vingança mesquinha”, como disse o seu
advogado, e, em termos jurídicos, é absolutamente insustentável. Mas convém
começar por relembrar que a prisão preventiva, ao contrário do que deixou
entender o acórdão da Relação de Lisboa neste caso, só pode ter por fundamento
as quatro situações de salvaguarda processual previstas na lei e jamais um
convencimento sobre a culpabilidade do suspeito — sob pena de se transformar
num pré-julgamento e numa pré-condenação, sem possibilidade efectiva de defesa.
Parece ser uma vingança, porque o MP já sabia que Sócrates recusaria a prisão
domiciliária com pulseira electrónica e, propondo o que sabia ia ser recusado,
quis apenas estender-lhe uma armadilha. Agora, até pode dizer que propôs a sua
saída da prisão — só que a arrogância do arguido recusou-a. Mas, mesmo assim,
quer o MP quer o juiz de Instrução (JIC) poderiam tê-lo posto em casa e, se
temiam o perigo de fuga, que lhe pusessem um polícia à porta (há tantos
polícias de plantão à porta de tanta gente importante e não há um disponível
para vigiar um ex-primeiro-ministro?). Se o não fizeram, foi porque a coragem
de Sócrates — preferindo enfrentar pelo menos mais três meses de prisão,
fechado doze horas por dia numa cela com 6 metros quadrados, sob temperaturas
de 36º — lhes soou como uma ofensa pessoal, insuportável de digerir.
E não tem qualquer sustentação jurídica, porque os dois fundamentos
invocados pelo MP e acolhidos pelo JIC, só não são ridículos porque são graves
e jogam com a liberdade de uma pessoa. A invocação do perigo de fuga (que o
próprio MP reconhece ser “diminuto” e que a Relação já descartou, constituindo,
portanto, caso julgado), é aberrante: alguém imagina um ex-PM, que se entregou
voluntariamente à prisão, uma vez posto em liberdade, andar por aí em fuga, de
cabeleira postiça, a atravessar fronteiras? E logo este, cujo orgulho, para o
bem ou para o mal, é sobejamente conhecido? Já quanto à invocação do perigo de
perturbação do processo, essa, é indigente: como é que Sócrates com pulseira
não perturba o processo, e sem pulseira já o perturba — será que a pulseira
grava conversas e analisa estados de alma?
A questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a
um julgamento isento.
Não, a decisão de o manter em Évora resulta apenas do facto de ele não
se ter vergado, de recusar ficar calado, de se defender publicamente de
acusações feitas publicamente, de enfrentar o terrorismo jornalístico diário do
“Correio da Manhã”, com o qual o “segredo de justiça” mantém uma relação de
compadrio escabrosa, de continuar a proclamar-se inocente e alvo de uma
perseguição pessoal e política e de ter recusado a humilhação de uma prisão
domiciliária, atado a uma anilha pensada para pedófilos, agressores conjugais e
criminosos contumazes. E de ainda lhes ter explicado que o fazia pela sua
dignidade e pela dos cargos que exerceu.
Esta semana, a “Sábado” publicou um exaustivo relato do segundo
interrogatório de Sócrates perante Rosário Teixeira, a 27 de Maio. É um
documento notável por duas razões. Primeiro, pelo desplante com que se assume
que aquilo é o resultado de uma gravação feita pelo MP. Ouvi que a drª Maria
José Morgado serviu uma teoria deveras imaginativa, segundo a qual grande parte
das fugas ao segredo de justiça eram promovidas pela própria defesa, para
depois se poder “vitimizar”. Neste caso, seria interessante que ela explicasse
como é que a gravação de um interrogatório, feita pelo MP, foi parar a uma
revista: terá o dr. Rosário Teixeira fornecido cópia à defesa de Sócrates, para
ele se poder vitimizar, ou terá inadvertidamente deixado o gravador ao alcance
de um qualquer funcionário ou jornalista de passagem?
Mas o mais impressionante do documento é a constatação de como, seis
meses decorridos sobre a prisão preventiva e mais de um ano sobre o início das
investigações, o MP continua literalmente aos papéis, seguindo o método
investigatório conhecido como de “pesca de arrasto”. O ponto de partida é o
mesmo de sempre e fundamental em tudo o resto: o dinheiro de Carlos Santos
Silva é, na verdade, de Sócrates, e todo ele resulta de “corrupção para acto
ilícito”. A partir daí, é o barro atirado à parede: a pista venezuelana do
favorecimento do Grupo Lena aparentemente esgotou-se, e dificilmente, aliás,
poderia caber dentro da tipificação de corrupção para acto ilícito, mas, quando
muito, de prémio por gestão corrente e até louvável — o que seria eticamente
insustentável, mas não crime algum. Então, as suspeitas, ou os “indícios”,
passaram a recair sobre qualquer crédito ou despesa registada na conta de
Santos Silva: se ele recebeu dinheiro de alguém ligado ao empreendimento de
Vale do Lobo, é porque se trata de dinheiro que serviu para pagar a Sócrates a
redacção ou alteração do Protal, a favor do empreendimento; se recebeu dinheiro
de alguém ligado à compra ou venda da quinta que foi de Duarte Lima, é porque,
por alguma obscura razão, era para pagar favores a Sócrates; se o dinheiro veio
de alguém que teria terrenos na Ota, é porque Sócrates mandou fazer lá o
aeroporto, em benefício de esse alguém; mas se também recebeu de alguém que
tinha terrenos em Alcochete, é porque afinal, em benefício de outrem, Sócrates
mudou o aeroporto para Alcochete; se passou o fim do ano em Veneza ou férias em
Formentera e Santos Silva o acompanhou e pagou parte das contas, é porque o
dinheiro era de Sócrates e proveniente de corrupção. E por aí adiante, numa
investigação que, assim, promete durar tanto como a exemplar investigação do
Freeport.
Não conheço o processo — que todos sabemos, aliás, estar em “segredo de
justiça”. Mas, a avaliar pelas fugas de informação, certamente promovidas pelo
dr. João Araújo, não vejo bem como é que tribunal algum, julgando com isenção e
face à prova produzida, conseguirá condenar Sócrates. Porque, repito: uma coisa
é a convicção, mesmo que esmagadoramente sustentada pela opinião pública, de
que ele é culpado; outra coisa é a prova de tal. Mas, face ao que se tem visto,
a questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a um
julgamento isento. E, se for o caso, a uma condenação baseada, não em
suposições ou manchetes do “Correio da Manhã”, mas nessa coisa comezinha, chata
e difícil de produzir, porém essencial, que se chama provas. O Estado de
direito não é um chá das cinco.» [Expresso]
Autor:
Francisco Sousa Tavares.
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