A morte do homem público é, tradicionalmente, um momento em que
convergem a banalidade e a hipocrisia. Faz parte da natureza humana. Na hora de
comentar o desaparecimento de alguém, não falta quem se acotovele para elogiar,
enaltecer, enfim, bem-dizer o defunto. No fundo, todos são extraordinários no
momento em que desaparecem do mundo dos vivos. E tudo porque, quem não tem nada
para dizer além do óbvio não resiste à tentação de abrir a boca.
Vem esta reflexão, pouco mais do que banal, a propósito de Mariano
Gago. Confrontado com a notícia, e antes de proclamar as costumeiras
trivialidades, Pedro Passos Coelho não encontrou melhor forma de iniciar o
elogio fúnebre do que dizer "apesar de ter servido em governos do Partido
Socialista...", como se a relevância de alguém se medisse pela cor da
camisola que veste.
Além de uma falta de sensibilidade chocante, o que a afirmação do
primeiro-ministro revela são vários traços que não deixam de merecer reparo. Em
primeiro lugar, Pedro Passos Coelho confessa um ódio político inexplicável e
intolerável a tudo o que não seja laranja. Como se ter sido servidor público
num governo que não o seu ou numa administração que não mereça o seu apoio,
seja uma espécie de maldição ou anátema que diminui a dignidade de alguém. Isto
é, Passos surpreende pelo sectarismo próprio de outras paragens políticas que
não são habituais nas águas em que o primeiro-ministro navega.
Por outro lado, declara uma razoável falta de sentido de Estado. Depois
de afirmada a reserva mental contida na expressão "apesar de...", bem
pode Passos Coelho dizer que não é tempo de recordar as diferenças, que o mal
já está feito. Como se a grandeza e o legado de um homem com o currículo de
Mariano Gago não esteja muito para além das baias partidárias.
Por fim, Pedro Passos Coelho não está mais do que a cometer um
vitupério grosseiro. Arrancar um elogio com o prefixo "apesar de...",
não é mais do que elogio em boca própria. Na verdade, o que o primeiro-ministro
está a dizer é que, apesar de Mariano Gago ser alguém por quem tinha o mais
profundo desprezo político e uma total falta de consideração partidária, é tão
magnânimo que, na hora da sua morte, é capaz de pôr tudo isso para trás das
costas, e reconhecer que ele até deu "um contributo inestimável para o
progresso da ciência em Portugal".
NUNO SARAIVA
Ontem no DN
Ontem no DN
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