Marta Nogueira, 21 anos, Joana Nogueira, 23. Primas. Anteontem de
manhã, na pastelaria onde trabalhavam, no Pinhão, Trás--os-Montes, um homem
entrou e apontou a arma para matar, para apagar, para desfigurar: cara,
pescoço, cabeça. Joana morreu, Marta está em coma. Os jornais - este jornal -
titulam: "Ciúme levou Manuel a disparar." Manuel, parece, tivera
namoro com Marta. O crime passa logo, então, à categoria "passional".
Como quem diz de amor, de sentimento, "que levam a".
É sempre assim: homem mata mulher? Coitado, gostava demasiado dela, e
ela ou o "deixou", ou ele tinha medo que ela o "deixasse",
ou ela "portava-se mal", ou ele tinha medo que ela se "portasse
mal". Mesmo, note-se, quando uma das mortas é prima do alegado objeto de
amor; estamos perante o crime passional por afinidade. Porque será, então, que
o homicídio do bebé de 5 meses que o pai esfaqueou há uma semana depois,
diz-se, de ligar à mãe da criança a ameaçá-la, não é "de paixão"?
Será porque a desculpabilização implícita, a "naturalização" e
"contextualização" que induz, não é aceitável na morte de crianças?
Porque nada pode justificar que se mate uma criança enquanto uma mulher, tantas
mulheres, é outra coisa?
É para contextualizar? Contextualizemos. Até 1975, o Código Penal
português incluía aquilo que nos países muçulmanos o Ocidente reputa de
bárbaro: crimes de honra. Permitia-se ao marido enganado matar a mulher e o
respetivo amante sem mais castigo que uns meses fora da comarca; o mesmo para o
pai que matasse as filhas "desonradas" se menores de 21 e a viver
"sob o pátrio poder". O Código Civil autorizava repudiar a mulher que
fosse não virgem para o casamento, no qual estava submetida ao "chefe de
família", que podia abrir-lhe a correspondência, dar--lhe ou não autorização
para ter emprego e decidia tudo sobre os filhos (a mãe tinha "o direito de
ser ouvida"). A mulher era ainda obrigada a viver com o marido, que podia
exigir à polícia a sua devolução caso fugisse. Isto tudo era lei, há 40 anos.
Era lei a submissão da mulher, era legal este desprezo que a tratava como menos
que pessoa inteira, a nomeava e manietava como propriedade masculina.
A lei mudou mas o sentimento que esta consagrava e propagava não se vai
tão rápido. A desculpabilização "passional" substituiu a da
"honra"; subsiste a ideia de que "elas dão motivos" - como
diziam os que à porta do tribunal aplaudiam Palito, o homem que há exatamente
um ano, a 17 de abril de 2014, matou a ex-sogra e a irmã desta e feriu a
ex-mulher e a própria filha: "Lá teve as suas razões." A própria
justiça o admite, em acórdãos vergonhosos nos quais nunca se invoca isso que o
Brasil no mês passado tipificou no Código Penal como feminicídio - o ódio às
mulheres que mata. Cá não, é por amor. Em 15 semanas de 2015, já foram, de tão
amadas, mortas onze. Somos assim românticos.
FERNANDA CÂNCIO
Hoje no DN
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