Uma das mais dolorosas aprendizagens durante estes mais de três anos de guerra na Ucrânia tem sido a de confrontar-me com o trágico declínio da honorabilidade académica e do brio intelectual, tanto nas instituições universitárias como nos meios de comunicação social. É com tristeza que tenho acompanhado o modo como professores, investigadores e jornalistas têm violado o imperativo de “imparcialidade homérica”, expressão cunhada por Hannah Arendt para definir uma virtude específica da tradição espiritual do Ocidente: a capacidade de analisar com objetividade a realidade, a natureza das situações, e os motivos dos agentes coletivos e individuais, mesmo no quadro de conflitos violentos.
O exemplo indicado por Arendt foi o do modo como Homero, na Ilíada, tratou as principais personalidades envolvidas nesse grande drama épico, escrito na aurora da literatura europeia: o príncipe troiano, Heitor, e o herói grego, Aquiles. O imortal autor grego não menorizou nem diabolizou Heitor, nem idolatrou Aquiles. Pelo contrário, procurou reconhecer neles as qualidades humanas e os motivos que dirigiam a sua conduta. Isso significa estar atento aos dados reais, aos factos elementares, fazendo abstração dos preconceitos. Na guerra da Ucrânia nada disso aconteceu. A invasão militar russa, libertou no Ocidente um tsunami propagandístico que há muito esperava que ela acontecesse. Slogans correram a imprensa de todo o mundo, nomeadamente, a frase “invasão não provocada”. Riscar a história, significa colocar a invasão num plano estritamente jurídico e moral.
Se uma agressão não tem causas, isso significa que se tratou do ato de um agente malévolo. Ao aceitarem a tese de uma invasão fora da esfera objetiva e material da causalidade, muitos cientistas sociais juntaram-se ao registo ululante e propagandista de uma nova vaga de russofobia, que há muito estava a ser preparada. Já em 2014, Kissinger acusava a crescente diabolização de Putin nos meios de comunicação social americanos como sendo o pior exemplo da ausência de uma política realista dos EUA perante a Rússia. Na verdade, a russofobia, velha presença na cultura ocidental, foi intensificada nos últimos quinze anos. Disso são prova os filmes e séries, onde os russos são sempre tratados como criminosos.
Henry Kissinger, Conferência de Segurança de Munique, 2014
Perante a guerra, esta ou qualquer outra, o que se espera de um intelectual é o exercício da sua capacidade analítica, antecipada pela procura dos dados empíricos que são as fontes primárias que alimentam o pensamento crítico.
Nada disso sucedeu. Como nos sistemas totalitários, formou-se no Ocidente uma cultura de massa vigilante para com a dissidência. Na imprensa ocidental, vozes desafinadas, jornalistas e colaboradores, mesmo académicos prestigiados, foram afastados. Nas universidades, fez-se caça às bruxas. Carreiras profissionais foram interrompidas. O objetivo de quem domina e manipula consiste em manter o controlo da narrativa binária: “ou és amigo, ou és inimigo”. Para isso, seria preciso esconder os factos, se não fosse possível destruí-los.
Agora, quando a guerra se encontra num momento tão sangrento como decisivo, a necessidade de mergulhar nas fontes, de conhecer os acontecimentos, de ler os documentos, é mais necessária do que nunca. Nesse sentido, os norte-americanos sempre se portaram melhor do que os europeus. Enfrentaram com mais coragem os obstáculos, também imbuídos pelo imperativo ético de denunciarem os abusos praticados pelo seu país para ocultar as suas próprias responsabilidades.
São três documentos de autores norte-americanos, aquilo que gostaria de propor ao leitor. Estes três contributos são de uma riqueza extraordinária, e são acessíveis a todos os que a eles queiram aceder. Indispensáveis para a formulação de um juízo esclarecido e livre.
Jeffrey Sachs
Primeiro. Conferência de Jeffrey Sachs no Parlamento Europeu. No dia 21 de fevereiro, por convite do deputado alemão, conde Michael von der Schulenburg (da Aliança Sahra Wagenknecht), um dos mais famosos e influentes economistas mundiais veio falar ao Parlamento Europeu, até hoje uma das mais belicistas instituições da UE. Durante mais de hora e meia, Jeffrey Sachs falou com conhecimento de causa, profunda sabedoria e notável eloquência sobre a sua experiência vivida junto de responsáveis políticos dos EUA e da Rússia, além de outros países do leste europeu, durante os mais de 30 anos que precederam a guerra. Testemunhou com veemência o efeito devastador de uma política externa dos EUA, onde o excesso de vontade de poder contrastava com a falta de competente prudência (1).
Segundo. Uma Cronologia da Guerra da Ucrânia. Dois escritores e jornalistas independentes americanos – Matt Taibbi e Greg Collard – produziram um documento que é um tesouro documental para historiadores profissionais e amadores. Inseridas nessa cronologia, encontram-se 114 documentos – ofícios desclassificados, filmes, gravações áudio, cópias de declarações oficiais, etc. -, desde a célebre reunião de 9 de fevereiro de 1990 (quando os EUA prometeram à URSS de Gorbachev que a NATO não se estenderia para Leste…) até à atualidade. Descarregando estes materiais, o leitor poderá construir o seu próprio arquivo sobre o sombrio rasto deixado pelas reais causas deste conflito (2). Terceiro. As responsabilidades do Ocidente. O terceiro e último documento é um ensaio breve, mas muito esclarecedor, de um investigador independente, Benjamin Abelow. Escrito no início do conflito, este ensaio recolhe uma pertinente informação sobre os numerosos esforços de diplomatas, políticos e académicos norte-americanos que tentaram evitar o alargamento da NATO e a degradação crescente das relações russo-americanas que tal implicaria. Muito bem assente nos dados empíricos, o ensaio partilha com os leitores o pensamento de autores de grande relevância, entre os quais sobressaem os seguintes: John Mearsheimer, Stephen F. Cohen, Richard Sakwa, Gilbert Doctorow, George F. Kennan, Chas Freeman, Douglas Macgregor, e Brennan Deveraux (3).
Trata-se de uma oportunidade única de alargar horizontes. Sobretudo, o leitor pode encontrar aqui instrumentos que o imunizam contra a poderosa máquina de desinformação e manipulação, que considera a liberdade do espírito crítico como o seu principal inimigo.
Matt Taibbi & Greg Collard (07 03 2025), Timeline: The War in Ukraine.
Benjamin Abelow, How the West Brought War to Ukraine. Understanding how U.S. and NATO Policies led to Crisis, War, and the risk of Nuclear Catastrophe, Great Barrington, Siland Press, 2022. https://progressivehub.net/.../How-the-West-Brought-War...
por Viriato Soromenho-Marques
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