1.
Conceição Matos aceitou estar comigo amanhã num monólogo que levarei em 2023 a vários teatros do país.
Aceitou estar comigo no Barreiro, lugar para onde foi viver com os pais e irmãos. Uma família de operários que chegou a uma terra de operários no final da década de 1930.
2.
Amanhã no Barreiro, nos meus “Ficheiros Secretos”, estará na primeira fila a mulher que foi mais torturada na história do Estado Novo.
A doce Conceição Matos, mulher de Domingos Abrantes, que mantém os seus olhos sem ponta de ressentimento depois de tanto sofrer, depois do tanto que lhe fizeram.
A Conceição que depois da quarta classe feita começou a trabalhar numa máquina de costurar e depois numa fábrica de pirolitos onde lavava as garrafas.
Terra dura, terra de exploradores e explorados, de conflito de classes.
O Partido Comunista tornou-se parte da sua vida.
Da sua e dos irmãos – o Alfredo, o mais velho, foi levado para o Aljube aos 18 anos.
E ela tornou-se comunista.
Esteve na clandestinidade muitos anos.
Foi várias numa só.
Maria Helena, Marília, Benvinda.
Mas só teve uma única cara e um único nome na prisão.
3.
Conceição Matos resistiu a tudo.
Às tantas tornou-se um troféu de caça para os inspetores Tinoco e Madalena, dois monstros que faziam apostas para lhe arrancar uma palavra que fosse.
E irritavam-se porque da boca de Conceição não saia rigorosamente palavra nenhuma que lhes servisse.
Torturaram-na barbaramente.
Espancaram-na.
Arrancaram-lhe as unhas a sangue frio.
Obrigaram-na a estar imóvel durante horas e horas e horas.
Obrigaram-na à tortura do sono, dias e dias e dias.
Choques elétricos, humilhações atrás de humilhações, uma perversidade levada a uma categoria demencial.
Arrancavam-lhe a roupa até ficar nua. Tiraram-lhe fotografias que distribuíam aos agentes da PIDE na António Maria Cardoso. Homens que riam fazendo gestos de natureza sexual enquanto olhavam para o seu corpo e para a fotografia que guardavam nas suas mãos como violadores à espera da presa.
Deixaram-na vários dias sem poder ir à casa de banho. O seu corpo com urina, com fezes, com o sangue da menstruação.
E ela com a roupa que trazia, a ter de limpar a cela imunda com o que tinha, com a roupa que tinha.
E depois a raiva dos pides por ela não falar, os agentes a entrarem e a espancá-la uma vez mais e uma vez mais e uma vez mais.
A gritarem os nomes que imaginas.
Tudo o que imaginas.
4.
Amanhã, no seu Barreiro, dar-lhe-ei um abraço forte.
E perguntar-lhe-ei a razão para ser assim.
Para continuar assim, com aqueles olhos curiosos de vida, sem ponta de ressentimento.
Conceição Matos, 86 anos, casada com o histórico Domingos Abrantes, dirigente marcante do PCP.
Uma das últimas provas vivas do combate e do sacrifício de tantos e tantas por uma ideia de liberdade. Ela e o marido, casados em 1969, em Peniche.
Conceição que é a prova de um combate corajoso por uma ideia de um mundo mais justo para quem nascia marcado com o ferro da desigualdade. Para gente como ela que nascia condenada a passar pela vida com um único objetivo: sobreviver.
Eu, filho de um comunista, mas crítico algumas vezes do PCP, não o esqueço.
E não o relativizo.
LO
POSTAL DO DIA
Luís Osório

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