Rádio Freamunde

https://radiofreamunde.pt/

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Vida. Artigo publicado hoje no Correio do Ribatejo:


Habitualmente coloco-os na plataforma medium.com. Mas hoje quis acompanhá-lo com uma imagem da caridade dos defensores da vida até ao fim e com dor. A tortura do rato.

Vida

A propósito da despenalização da eutanásia. Começando pelo início.
A vida o que é? Há uma definição de vida melhor do que ser? Do que existir? Do que existência?
E o direito o que é? Um direito o que é? A definição de direito começa sempre por ser subjetiva. Os seres têm direitos e estes são sempre subjetivos. Os humanos são simultaneamente indivíduos e membros de uma sociedade. Para os defensores da liberdade, o direito individual prevalece sempre que não colida com os direitos dos outros e da sociedade. A melhor definição dos direitos dos indivíduos numa sociedade que conheço é a da faculdade de uma pessoa mover a ordem jurídica segundo seus interesses. É a conceção que resulta da afirmação comum de "eu tenho o direito de pensar o que eu quiser!" O Quino, na Mafalda utilizava muito este conceito.
E eutanásia? A definição mais comum é a de um ato intencional de proporcionar a alguém de forma indolor o fim da sua existência para o libertar de um sofrimento incurável e insuportável. Isto é, para libertar alguém de uma não existência forçada e contra a sua vontade.
Foi este ato misericordioso que foi despenalizado na Assembleia da República pela maioria dos deputados eleitos pelos portugueses, uma despenalização para conceder o direito subjetivo aos cidadãos que querem findar os sofrimentos insuperáveis da sua existência e necessitam de um apoio. Foi esse apoio que o Estado, através dos representantes eleitos pelos seus cidadãos, decidiu deixar de considerar um crime.
São conhecidas das histórias da crueldade humana algumas das mais dolorosas e prolongadas formas de acabar com uma existência. A crucificação, por exemplo, que não foi exclusiva dos romanos na Palestina. Era comum desde tempos remotos em várias culturas e civilizações e tinha por objetivo fazer com que as pessoas demorassem dias para morrer. Outro método de prolongar o sofrimento foi a “tortura do rato” As pessoas eram deitadas numa cama de madeira, com um recipiente de rede de arame preso à sua barriga cheio de ratos. O recipiente era aquecido por cima e os ratos, para fugir do calor, cavavam com os dentes um buraco no abdómen da vítima.
Abreviar o sofrimento do condenado era (seria), neste caso, um ato de misericórdia. Esse ato ganhou mesmo a designação de “golpe de misericórdia”.
Hoje há ainda quem recuse o gesto de misericórdia! E os que o recusam invocam uma superioridade moral para o recusar! Referem mesmo a dignidade da vida até ao último suspiro, da tortura até ao fim, para assim cumprir o seu destino. E referem mesmo o direito divino para impor a tortura até ao fim! Puro sadismo, a que alguns chamam religião!
Voltemos à vida. A vida que é, na essência, a existência de um ser, no caso dos humanos, de um ser que se considera ontologicamente detentor de uma dignidade que radica na capacidade para escolher as suas opções. Escolher o fim e dispor de alguém que o auxilie a ter um bom fim, ou o melhor fim possível, é um direito, não pode ser um crime.
Mesmo recorrendo à história, é uma chocante hipocrisia a cruzada dos grupos religiosos que se reclamam do cristianismo contra a despenalização da morte assistida, porque desde a Idade Média o cristianismo promoveu a “arte de bem morrer”, ars moriendi. Os chefes religiosos aterrorizavam os fiéis com o perigo da morte súbita (no momento decidido por outrem) e tinham como objetivo exortar o cristão, o crente, o fiel, sujeito passivo a preparar o momento do transitus.
Que melhor preparação que a de ser o próprio a dizer que está pronto e a pedir ajuda para o fim das suas dores? E que melhor ato de misericórdia que esse auxílio ser-lhe concedido?

Carlos Matos Gomes

Sem comentários:

Enviar um comentário