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segunda-feira, 23 de março de 2015

Quem mais se eclipsa?

1-Há 2596 anos, os exércitos de Lídia e de Medeia envolviam-se numa sangrenta batalha campal, naquela guerra que durava há seis longos anos. Subitamente, e era de dia, o Sol desapareceu do céu, porque estava a ocorrer um eclipse total. O estranho fenómeno aterrorizou tanto os dois contendores, que decidiram baixar armas e decretar a paz. Seguiu-se um longo período de prosperidade.
Eclipse não rima com VIP. Nem com lista. Ou fisco. Nem é o fim do mundo, como algumas seitas ainda acreditam, embora se possa escrever um verso rimando com apocalipse. Astros e impostos esta semana voltaram a cruzar-se. Nos céus e no Parlamento. Aqui na terra e lá em cima no ar. Parece que só o governo, a ministra das Finanças e o secretário de Estado da tutela não conseguiram ver. Nem com os óculos especiais comprados na farmácia.
Há um estranho alinhamento entre eclipses e matérias fiscais em Portugal. Há década e meia, precisamente a 11 de agosto de 1999, também o dia ficou breu, eclipse total, e Sousa Franco não esperou que a Lua voltasse a destapar o Sol, para revelar uma reforma fiscal. Mais uma, a sua, ao meio-dia, no Terreiro do Paço.
2-Os tempos são outros, agora de austeridade. Já nem os eclipses são totais. Parcial, o desta sexta. Paciência. Triste sina. Reformas eclipsadas, sobram fenómenos de ocultação. Outros fenómenos, outras ocultações. De listas, do fisco, de responsabilidades obscuras, de astros famosos. Políticos e alta finança. Ronaldo e Amorim.
Núncio não sabia, Albuquerque de cofre cheio (de dinheiro de impostos, por sinal), Passos Coelho mais preocupado com os seus. Que alguém descobriu e fez constar que estavam por liquidar. Não há respeito, nem pelos VIP nem pelos astros devedores. Alta Autoridade, baixo astral. Ideia inverosímil e perigosa, a de o sigilo ter saído da esfera governativa e ser tratado como ato administrativo.
Sindicato denuncia Núncio, secretário de Estado solta o partido que ameaça sindicalistas com processo difamatório. O Sol não desapareceu, mas também não brilha para todos nós. A lista dos protegidos fiscais não é um expediente contra a cobiça alheia, antes uma autêntica história das trevas.
O problema da lista VIP do fisco não é o mecanismo de alerta que dispara sempre que é consultado o registo contribuinte de um famoso previamente catalogado. Grave é imaginar o que poderá acontecer a todos os outros dez milhões de portugueses. Inseguros, estão à mercê da devassa e de todo o tipo de patifarias que esta gente discrimina, lista, sabe que está a violar a lei: é capaz de tudo, incluindo perseguir ou ajustar contas. É ilegal. É imoral. Porque desmoraliza a populaça, porque desacredita o Estado e a sua administração tributária.
3-E deita tudo a perder. Porque não pode valer tudo. Não é uma prática nova, a história recente entre o Estado e os seus contribuintes está carregada de episódios de utilização indevida da informação do simples cidadão e da empresa comum para apanhar quem foge e quem não paga.
Mas estava a mudar. Desde que Paulo Macedo passou pela Direção-Geral de Contribuições e Impostos, um percurso de credibilização e eficácia foi realizado, foi evidente o cerco mais apertado à fraude, tornou-se hábito quotidiano a emissão de faturas, traduziu-se em milhões de euros de receita pública aquilo que antes andava pela economia paralela.
Neste governo, com este secretário de Estado, o progresso continuou a ser notório e esta é, sem dúvida, uma das marcas mais transformadoras que a atual legislatura deixa. Nunca resolveram a arrogância, a sobranceria, o pague-primeiro-e-proteste-depois. Mas esta é outra história. Diferente da desconfiança, do descrédito, da falta de autoridade.
O povo pagava - o povo paga mais do que devia, muitas vezes paga mais do que aquilo que pode e tem - mas começava a ganhar a esperança de alguma justiça, de ver todos a contribuir, de que calhava a todos e que todos estavam a ser tratados por igual. Não estavam. É isso que esta lista diz. É isto que este caso vergonhoso revela. A lista estava oculta pela vergonha de quem a inventou e pela ilegalidade que ela em si mesma representa.
Pode o diretor-geral demitir-se ou ser demitido, que a Autoridade está ameaçada. Pode o subdiretor sacrificar-se ou ser sacrificado que não há justiça tributária que resista. Pode a máquina fiscal ser até decapitada, que Paulo Núncio e a sua ministra não conseguem escapar ilesos.
4-O único engodo dos eclipses solares está na medida da sua raridade. Só assim é possível entender que um espetáculo tão monótono e aborrecido provoque curiosidade popular e atenção mediática.
No frenético eclipse de 1999, passei pelo Rio de Janeiro poucos dias antes do evento. Os brasileiros, que vivem numa parte do hemisfério onde até não foi possível observar o fenómeno, nem por isso perderam a ocasião. Para celebrar. Para comungar do receio sobre o fim do mundo. Ou para fazer as duas coisas ao mesmo tempo: em dezenas de restaurantes do Leblon e de Ipanema apareceram cartazes à porta como "a última ceia" ou "Nostradamus convida" ou ainda "se é para acabar, que seja de barriga cheia e feliz".
Era uma história de astros, de Lua e Sol. Só na astronomia, não no fisco português, os mais pequenos conseguem de vez em quando ofuscar os maiores.
SÉRGIO FIGUEIREDO
No DN

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