1-Há 2596 anos, os exércitos de Lídia e de Medeia envolviam-se numa
sangrenta batalha campal, naquela guerra que durava há seis longos anos.
Subitamente, e era de dia, o Sol desapareceu do céu, porque estava a ocorrer um
eclipse total. O estranho fenómeno aterrorizou tanto os dois contendores, que
decidiram baixar armas e decretar a paz. Seguiu-se um longo período de
prosperidade.
Eclipse não rima com VIP. Nem com lista. Ou fisco. Nem é o fim do
mundo, como algumas seitas ainda acreditam, embora se possa escrever um verso
rimando com apocalipse. Astros e impostos esta semana voltaram a cruzar-se. Nos
céus e no Parlamento. Aqui na terra e lá em cima no ar. Parece que só o
governo, a ministra das Finanças e o secretário de Estado da tutela não conseguiram
ver. Nem com os óculos especiais comprados na farmácia.
Há um estranho alinhamento entre eclipses e matérias fiscais em
Portugal. Há década e meia, precisamente a 11 de agosto de 1999, também o dia
ficou breu, eclipse total, e Sousa Franco não esperou que a Lua voltasse a
destapar o Sol, para revelar uma reforma fiscal. Mais uma, a sua, ao meio-dia,
no Terreiro do Paço.
2-Os tempos são outros, agora de austeridade. Já nem os eclipses são
totais. Parcial, o desta sexta. Paciência. Triste sina. Reformas eclipsadas,
sobram fenómenos de ocultação. Outros fenómenos, outras ocultações. De listas,
do fisco, de responsabilidades obscuras, de astros famosos. Políticos e alta
finança. Ronaldo e Amorim.
Núncio não sabia, Albuquerque de cofre cheio (de dinheiro de impostos,
por sinal), Passos Coelho mais preocupado com os seus. Que alguém descobriu e
fez constar que estavam por liquidar. Não há respeito, nem pelos VIP nem pelos
astros devedores. Alta Autoridade, baixo astral. Ideia inverosímil e perigosa,
a de o sigilo ter saído da esfera governativa e ser tratado como ato
administrativo.
Sindicato denuncia Núncio, secretário de Estado solta o partido que
ameaça sindicalistas com processo difamatório. O Sol não desapareceu, mas
também não brilha para todos nós. A lista dos protegidos fiscais não é um
expediente contra a cobiça alheia, antes uma autêntica história das trevas.
O problema da lista VIP do fisco não é o mecanismo de alerta que
dispara sempre que é consultado o registo contribuinte de um famoso previamente
catalogado. Grave é imaginar o que poderá acontecer a todos os outros dez
milhões de portugueses. Inseguros, estão à mercê da devassa e de todo o tipo de
patifarias que esta gente discrimina, lista, sabe que está a violar a lei: é
capaz de tudo, incluindo perseguir ou ajustar contas. É ilegal. É imoral.
Porque desmoraliza a populaça, porque desacredita o Estado e a sua
administração tributária.
3-E deita tudo a perder. Porque não pode valer tudo. Não é uma prática
nova, a história recente entre o Estado e os seus contribuintes está carregada
de episódios de utilização indevida da informação do simples cidadão e da
empresa comum para apanhar quem foge e quem não paga.
Mas estava a mudar. Desde que Paulo Macedo passou pela Direção-Geral de
Contribuições e Impostos, um percurso de credibilização e eficácia foi
realizado, foi evidente o cerco mais apertado à fraude, tornou-se hábito
quotidiano a emissão de faturas, traduziu-se em milhões de euros de receita
pública aquilo que antes andava pela economia paralela.
Neste governo, com este secretário de Estado, o progresso continuou a
ser notório e esta é, sem dúvida, uma das marcas mais transformadoras que a
atual legislatura deixa. Nunca resolveram a arrogância, a sobranceria, o
pague-primeiro-e-proteste-depois. Mas esta é outra história. Diferente da
desconfiança, do descrédito, da falta de autoridade.
O povo pagava - o povo paga mais do que devia, muitas vezes paga mais
do que aquilo que pode e tem - mas começava a ganhar a esperança de alguma
justiça, de ver todos a contribuir, de que calhava a todos e que todos estavam
a ser tratados por igual. Não estavam. É isso que esta lista diz. É isto que
este caso vergonhoso revela. A lista estava oculta pela vergonha de quem a
inventou e pela ilegalidade que ela em si mesma representa.
Pode o diretor-geral demitir-se ou ser demitido, que a Autoridade está
ameaçada. Pode o subdiretor sacrificar-se ou ser sacrificado que não há justiça
tributária que resista. Pode a máquina fiscal ser até decapitada, que Paulo
Núncio e a sua ministra não conseguem escapar ilesos.
4-O único engodo dos eclipses solares está na medida da sua raridade.
Só assim é possível entender que um espetáculo tão monótono e aborrecido
provoque curiosidade popular e atenção mediática.
No frenético eclipse de 1999, passei pelo Rio de Janeiro poucos dias
antes do evento. Os brasileiros, que vivem numa parte do hemisfério onde até
não foi possível observar o fenómeno, nem por isso perderam a ocasião. Para
celebrar. Para comungar do receio sobre o fim do mundo. Ou para fazer as duas
coisas ao mesmo tempo: em dezenas de restaurantes do Leblon e de Ipanema
apareceram cartazes à porta como "a última ceia" ou "Nostradamus
convida" ou ainda "se é para acabar, que seja de barriga cheia e
feliz".
Era uma história de astros, de Lua e Sol. Só na astronomia, não no
fisco português, os mais pequenos conseguem de vez em quando ofuscar os
maiores.
SÉRGIO FIGUEIREDO
No DN
No DN
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