Era um fim de tarde embatente de frio e uma névoa descia lenta e
espessa na cidade. 24.12.2014 00:30 Comecei a vê-los assim que me aproximei do
hospital. Eram umas dezenas: homens, mulheres, velhos, novos, alguns
deficientes, todos encostados às paredes dos numerosos restaurantes que por ali
havia. Esperavam os restos dos almoços, com disciplina e contenção. À
distância, um carro da Polícia vigiava. Mas nada de sobressaltante acontecia.
"Tudo calmo, por aqui", comunicava um dos agentes para a esquadra. O
tempo era inclemente e a solidariedade parecia desempregada. Nas ruas, as
pessoas não se cruzavam, trespassavam-se com a indiferença de quem apenas quer
saber de si. Ia ver a minha mulher, que quebrara a perna esquerda em duas
partes e os médicos preparavam-na para a engessar. Eu vira os ossos de perna
dela expostos e ensanguentados e a imagem perturbara-me. Os nossos filhos iam
vê-la, consoante a disponibilidade dos horários das escolas e os do hospital. O
mais novo parecia que ronronava e estava constantemente a afagar-lhe o braço,
com a cara encostava ao corpo dela. Contei-lhe das pessoas que aguardavam as
sobras dos restaurantes, e de dois amigos nossos que tinham sido presos. Política,
está bom de ver. O hospital, o de São Lázaro, estava repleto. Disse-me ela:
"Há muito mais velhos do que novos. Os velhos caem em casa. Há alguns
novos, mas a maioria é constituída por velhos que caíram em casa." Agora,
caía uma chuva miúda e a cidade cheirava a peixe podre. Ouviu-se o silvo de uma
ambulância e um grito longínquo. "Daqui a duas semanas, saio, mas vou
ficar uns tempos largos com a perna cheia de gesso. E dá--me uma comichão
enorme. Tens chegado cedo a casa?" Aproxima-se um médico. Não me liga
nenhuma e faz perguntas do estado de saúde da minha mulher. Ela responde-lhe
dificultosamente e estou à beira de intervir na conversa. A arrogância dos
médicos é como se fora o seu estatuto social. Despeço-me dela e acaricio-lhe o
belo rosto com ternura. "Já não sei dormir sem ti", digo. "Vem
depressa." A rua é um bloco de gelo, e os eléctricos circulam vazios. As
pessoas comem dos caixotes, depois de escolherem as peças mais apresentáveis.
Um dos deles olha-me fixamente. Diz: "Nunca viu um homem comer?"
Umas de maior importância que outras. Outrora assim acontecia. É por isso que gosto de as relatar para os mais novos saberem o que fizeram os seus antepassados. Conseguiram fazer de uma coutada, uma aldeia, depois uma vila e, hoje uma cidade, que em tempos primórdios se chamou Fredemundus. «(Frieden, Paz) (Munde, Protecção).» Mais tarde Freamunde. "Acarinhem-na. Ela vem dos pedregulhos e das lutas tribais, cansada do percurso e dos homens. Ela vem do tempo para vencer o Tempo."
Rádio Freamunde
https://radiofreamunde.pt/
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