Ao ler um texto de ex-combatentes da guerra do ultramar e onde se
afirma que um cada dez está afectado por doenças do foro psíquico nada me
surpreende. Quem viveu este drama sabe o quanto foi difícil viver isolado
durante vinte e dois meses, o meu caso, e constantemente apoquentado com o que
nos pudesse acontecer. A vida de militar era difícil. Viver este tempo todo sem
uma alma feminina leva a tornar-nos uns seres sem sentimentos. Por que quer
queiramos ou não faz falta a presença feminina, a sua voz e o seu encanto.
Assim tornamo-nos nuns seres abrutalhados. Sempre as mesmas coisas e as mesmas
caras.
Por isso o não me surpreender que em qualquer zanga se dizia: dou-te um
tiro. Um dia estava de serviço ao acampamento da Junta Autónoma Estradas de
Angola (JAEA) e como era Radiotelefonista e tinha de ficar no acampamento
foi-me incumbido de ser o responsável pela venda das bebidas e tabaco. Havia
sempre uma secção de soldados que ficava de piquete ao acampamento e que volta
e meia vinham comprar cerveja. Só estava autorizado a vender duas cervejas a
cada soldado fora as das refeições. Alguns soldados tentaram enganar-me mas não
levaram a sua avante.
À tardinha, depois do horário laboral dos trabalhadores da JAEA, ia uma
coluna de soldados do quartel buscar os trabalhadores. Nesse dia dois soldados
que faziam parte do pelotão que custodiava as máquinas da JAEA pediram ao
Alferes para irem ao quartel e lá pernoitarem pois tinham assuntos a tratar. O
Alferes autorizou.
Ao outro dia a coluna de soldados quando foi levar os trabalhadores da
JAEA disseram que houve tiroteio no quartel e que quem o praticou foi um
soldado que estava dado ao pelotão que fazia segurança ao acampamento da JAEA.
Que depois de ter disparado vários tiros dentro de uma camarata e ver vários soldados
estendidos no chão saiu da camarata e deu um tiro em si próprio. Apontou a G3
ao coração e disparou. Estava estendido no chão com arma na suas mãos e ninguém
se atrevia a prestar-lhe socorro. Passados uns minutos é que o socorreram mas
já tinha sido pedido uma evacuação de helicóptero a Luanda.
Nesta altura teríamos ano e meio de comissão. A maioria dos soldados
andava como se dizia “cacimbados”. Comecei a recear. A partir desta data
oferecia-me voluntário para o acampamento da JAEA. Tinha piores condições
habitacionais e de higiene mas preferia isto do que viver na turbulência do
quartel.
Houve tempos que volta e meia durante a noite eramos perturbados com a
algazarra de um Furriel. Pedíamos para abandonar a camarata pois ali não era os
seus aposentos mas éramos logo ameaçados por ele com uma granada na mão.
Quantas vezes eu e outros colegas rastejávamos pelo cimento da camarata para
fugir dali. Como as luzes da camarata estavam apagadas o furriel não dava pela
nossa saída.
O tempo ia passando e cada vez se tornava mais difícil a nossa
vivência. Foi muito tempo isolados de tudo. A povoação mais próxima era o
Caxito. A vinda a esta povoação evitou males maiores. Aqui podíamos desfrutar
de um almoço ou jantar, petiscar umas moelas ou camarão, frango no churrasco,
tudo isto, acompanhado com umas Nocais ou Cucas, conviver com outras pessoas e
uma saltada às mulheres que vendiam “amor”. Se não fosse isto não sei os
traumas que amealhávamos. Para exemplo: Houve soldados que nunca vieram ao
Caxito ou gozaram férias em Luanda e quando viemos para Luanda aguardar
embarque tinham dificuldade em andar na cidade e atravessar as ruas.
Por isso há pessoas que ironizam com a desdita de milhares de homens
que hoje sofrem com os traumas da guerra. Gostava que lhes viesse a suceder o
mesmo. Já disse e volto a dizer que não sinto vergonha pelo meu passado e fazer
parte dos veteranos de guerra. Assim como não comungo do aspecto de
“nacionalistas” que alguns veteranos demonstram.
Fomos fruto de um sistema que envergonhou o País. Não escolhemos esta situação fomos obrigados a aceitá-la.
Fomos fruto de um sistema que envergonhou o País. Não escolhemos esta situação fomos obrigados a aceitá-la.
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