Pedro Santos Guerreiro| psg@negocios.pt
Não é esta a promiscuidade a que estamos habituados. Falamos de conúbios financeiros há anos, de políticos na banca e de banqueiros na política, nos créditos de uns para as obras de outros, nos financiamentos opacos, leis de favor, benefícios fiscais, dinheiro dos contribuintes, somos catedráticos nessa inconsequente disciplina. Mas isto dos "swaps" tóxicos é outra selva. Não é negociata de paróquia, é prática implacável dos maiores bancos de investimento do mundo. É ao lado negro de um planeta fascinante e sinistro de delícias e sevícias onde se compra e vende tudo, e onde os parvos são palha para estofar sofás.
O relato é feito amiúde por "arrependidos" que largam o vício
do dinheiro. Sim, do dinheiro: a banca de investimento paga os salários mais
altos do mundo empresarial. Os salários não, os prémios. Prémios que dependem
de desempenho. Desempenho que depende de angariar lucro. Lucro que depende
muitas vezes de transaccionar risco para os clientes. O português João Ermida
deixou de ganhar milhões por ano no Santader porque já não suportava olhar-se
ao espelho e publicou um livro expiando os seus pecados. O americano Greg Smith
escreveu uma carta memorável, "Porque estou a sair da Goldman Sachs",
retrato cru de uma organização disposta a sacrificar os interesses de clientes
no vórtice da obcecação pelo seu próprio lucro.
Um pequeno relato pessoal: em 2009 infiltrei-me alguns dias em vários
bancos de investimento na City, disfarçado de financeiro de empresa cotada em
reuniões com investidores, naturalmente vedadas a jornalistas. Foi como
acompanhar um "road show", nunca pude escrever sobre essas reuniões
nem o farei agora. Mas posso, porque já passou suficiente, relatar o paradoxo a
que assisti dentro e fora desses bancos. Tinha passado um ano desde a falência
do Lehman Brothers e de terem sido juradas guerras infernais às actividades não
reguladas da banca, a pressão política sobre quem havia intoxicado o mundo de
prejuízos do mercado imobiliário americano (o "subprime") era
intensa, as opiniões públicas queriam condenados, os reguladores prometiam
guerra, as manchetes dos jornais ingleses desses dias eram invariavelmente com
escândalos de bónus de banqueiros. Pois bem, nesses bancos eu entrei numa
espécie de Atlântida encapsulada do ambiente depressivo (e repressivo) das
ruas. Lá dentro só se falava de bónus. O ano aproximava-se do fim e as bocas
desenhavam risos em todas as caras, que se viravam das janelas desprezando as
manifestações lá fora. Semanas depois soube-se: depois da hecatombe de 2008, a
banca de investimento teve o melhor ano de sempre em 2009. Em grande parte
porque os Governos, desesperados com os riscos de depressão económica causada
pelo sistema financeiro no "subprime", carregaram no investimento
público, aumentando as suas dívidas públicas, com financiamento e assessoria...
dos bancos de investimento.
Nesses dias, em Londres, perdi as ilusões sobre a possibilidade de
moralização ou captura regulatória da actividade financeira. Não estamos a
falar de toda a banca, nem sequer de toda a banca de investimento, mas de
departamentos que nela se mantêm ante a impotência da supervisão. Estamos a
falar de produtos estruturados, de "swaps", ABS, CDS, ETF, MBS, "black
pools", "proprietary trading", transacções de alta frequência,
derivados sobre acções, taxas de juro, moedas, commodities, produtos negociados
"ao balcão", sem passarem por plataformas reguladas.
Comprar um "swap" é uma decisão normal para proteger uma
empresa do risco de taxa de juro. Mas há "swaps" normais e exóticos -
e as empresas públicas (e muitas PME) compraram risco insuportável a troco de
ganhos imediatos. Sabendo ou não o que faziam (o que não é indiferente), foram
triturados nos passadouros dos bancos de investimento.
A indústria financeira é alquímica, produz ricos sem produzir riqueza.
Não fabrica pregos e não constrói pontes, financia e cria complexidades. O
célebre livro "O Capitalismo é Amoral" foi escrito por eles. A banca
de investimento fornece as soluções à medida, as boas e as diabólicas. Na
indústria da aviação, por exemplo, a compra de "swaps" sobre o
petróleo tornou-se às tantas mais importante para o negócio que a venda de
bilhetes.
A pressão para os resultados é brutal e o prémio pode ser gigante. A
ética não é uma variável. Come-se o que se mata. Mata-se colegas, concorrentes,
clientes, empresas, Estados. O serviço destes bancos na Grécia, e que foi
proposto a Portugal, não foram produtos financeiros, foram produtos sobre como
mentir. Mentir nas contas públicas, mascarar dívidas, esconder riscos, enganar
os povos. E, no entanto, mesmo depois da vergonha desmascarada, os mesmos
bancos são contratados pelos mesmos Estados (incluindo Portugal), que continuam
sujeitos às mesmas agências de "rating". Eles são os mercados. E nós
precisamos dos mercados porque somos dependentes da droga que eles vendem:
crédito.
Os Pais Jorges são peões minúsculos no tropel deste processo. A sua entrada no Governo até podia ser boa pela razão que leva empresas de "software" a contratar "piratas": pelo que sabem. O senhor estatelou-se em mentiras e foi cuspido, num processo político e mediático que dispersa a nódoa, destruindo peões e a imagem dos partidos, mas desinteressado do essencial: a preservação das acções políticas de devedores compulsivos e financeira de credores ardilosos que gerou este escândalo e gerará o próximo. O regime transformou-se num esquema.
Os Pais Jorges são peões minúsculos no tropel deste processo. A sua entrada no Governo até podia ser boa pela razão que leva empresas de "software" a contratar "piratas": pelo que sabem. O senhor estatelou-se em mentiras e foi cuspido, num processo político e mediático que dispersa a nódoa, destruindo peões e a imagem dos partidos, mas desinteressado do essencial: a preservação das acções políticas de devedores compulsivos e financeira de credores ardilosos que gerou este escândalo e gerará o próximo. O regime transformou-se num esquema.
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