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terça-feira, 4 de março de 2025

E o Guinness da sem-vergonhice vai para:

É difícil escolher; os candidatos são todos fortíssimos. Do próprio Montenegro ao PR, passando pelo MP e pelo candidato presidencial do PSD, é um festim de fazer de nós parvos.

"A manipulação e a mentira têm sempre um prazo de validade”. As palavras são de Luís Montenegro a 7 de novembro de 2023, na sequência da demissão do então primeiro-ministro António Costa que, recordemos, tomou essa decisão após a Procuradoria Geral da República (PGR) ter publicado um comunicado no qual informava que Costa estava a ser investigado no âmbito de um processo criminal.

Na mesma alocução, Montenegro usou palavras como “compadrio”, “pântano”, e falou até de “corrupção administrativa e política”. E de “ser imperioso recuperar a confiança”.

Nem ano e meio depois, nada até agora existindo publicamente como indício de corrupção ou compadrio por parte de António Costa, é Luís Montenegro o primeiro-ministro que se viu obrigado a convocar um conselho de ministros extraordinário e a falar ao país, rodeado do resto dos governantes, a propósito da Spinumviva, empresa criada por si em 2021, em conjunto com a mulher educadora de infância e os filhos adolescentes. Spinumviva que até hoje recebe avenças chorudas (no total, poderemos estar a falar de mais de 15 mil euros mensais; só uma das avenças é de 4500 euros) de uma série de empresas com as quais Montenegro teve relações profissionais antes de ser primeiro-ministro.

Como saberá quem ouviu a alocução deste sábado, Luís Montenegro garantiu que a empresa em causa, a qual alegadamente presta serviços no sentido de “garantir a conformidade dos procedimentos em matéria de proteção de dados pessoais”, foi criada com os filhos – que em 2021 tinham 15 e 19 anos – e tem “um know how, uma estrutura de conhecimento, pessoas qualificadas e especializadas” (segundo foi noticiado, trata-se de duas pessoas, uma advogada ligada ao PSD e um jurista) que não só justifica o valor das avenças pagas como permite que, como anunciou, passe a funcionar na estrita dependência dos seus filhos.

Como deverá ser evidente, a carteira de clientes da Spinumviva não se deve aos filhos de Montenegro nem à sua mulher, mas a ele e apenas a ele. O que exatamente estão a pagar, com as suas avenças, as empresas é matéria de especulação – só conhecendo aquilo que a empresa faz realmente e quem o faz nela, e por quanto, se poderá perceber.

Porém, convenhamos, é um pouco bizarro que o trabalho de apenas dois juristas sob as ordens de dois jovens sem qualquer experiência profissional valha 15 mil ou mais euros mensais. Levanta dúvidas, sim. E tanto mais que Luís Montenegro criou a empresa um ano antes de ser eleito presidente do PSD, cedendo depois as quotas da mesma à mulher e filhos, num ato jurídico que, explica quem disso sabe (e Montenegro é jurista), é nulo por estar casado em comunhão de adquiridos. A ser assim, a empresa continuou a ser dele, o que significa que os proventos da mesma, entrando na esfera financeira da mulher, entravam na sua.

Como disse o constitucionalista Jorge Reis Novais ao DN, em entrevista publicada esta segunda-feira, as avenças pagas à Spinumviva continuaram a ser pagas a Luís Montenegro, mesmo após este assumir o cargo de primeiro-ministro – o que, na opinião do mesmo constitucionalista, viola a exclusividade a que está obrigado enquanto governante.

Reis Novais considera que esse facto deve levar o Ministério Público a agir. Essa ação não diz respeito a um inquérito criminal, mas à lei que rege o exercício de funções por titulares de cargos políticos – e que, se para outros titulares que violem a exclusividade determina a perda de mandato automática, no do primeiro-ministro implica uma ação nos tribunais administrativos, a qual tem de ser intentada pelo MP.

Ora a PGR até agora limitou-se a informar, após questionada pelo Expresso e Lusa sobre a eventual existência de um inquérito criminal, que está a “analisar” uma denúncia anónima contra o PM. Não se sabendo de que trata a denúncia, será interessante conhecer o resultado de tal análise, tendo em conta que em 2022 a mesma PGR informou ter sido instaurado um inquérito criminal a Mariana Mortágua para, como foi noticiado na altura, “apurar a eventual prática de infrações penais que envolvem a deputada na simultaneidade do recebimento do subsídio de exclusividade da sua atividade parlamentar com o desenvolvimento de colaborações remuneradas em órgãos de comunicação social”.

Do mesmo modo, ocorre lembrar que em maio de 2024 o MP, pela voz do procurador Rui Batista, nas alegações finais do julgamento de Manuel Pinho, falava da “gravidade” que é “alguém que exerce funções públicas” – referia o facto de o arguido ter sido ministro – receber “dinheiro de entidades privadas”.

Face ao histórico e ao que se sabe sobre o caso Spinumviva, será bastante difícil de compreender que o MP não veja matéria para agir – no âmbito do regime do exercício de funções de cargos políticos ou mesmo abrindo um inquérito criminal. Como é bastante difícil de compreender que do Presidente da República, que antes vimos tão lesto a comentar tudo e um par de botas, a exigir demissões (como fez com João Galamba), a chamar primeiros-ministros e procuradoras gerais da República a Belém e a fazer, como epílogo, passeios noturnos, com séquito de jornalistas, ao beco que imortaliza a vingança de um rei contra a família que alegadamente o quis destituir, se oiça apenas, na habitual fórmula “Belém diz”, um patético queixume sobre Montenegro não o ter querido ouvir antes de falar ao país. E a certificação de que, quando a seguir o primeiro-ministro lhe ligou, não o atendeu – como se tudo se resumisse a um amuo entre compadres.

Já do proposto sucessor de Marcelo, o conselheiro de Estado e candidato à Presidência da República pelo PSD Luís Marques Mendes, o mesmo que quando António Costa se demitiu, em novembro de 2023, disse que ele não tinha alternativa, falando de “criminalidades a acontecer próximo do primeiro-ministro”, ouvimos, em declarações esta segunda-feira ao DN, que “uma nova crise política não teria explicação nem desculpa” e “faria o país entrar no Guinness como um caso único de irresponsabilidade”. Isto porque “o mundo está perigoso e desregulado, a Europa está frágil e vulnerável, e a incerteza surge por todo o lado”– coisas que, evidentemente, se não passavam em novembro de 2023, um mês após o ataque do Hamas a Israel e quase dois anos depois da invasão da Ucrânia pela Rússia.

Com o mundo tão perigoso, diz-nos este candidato a árbitro do regular funcionamento das instituições nacionais, um PM pode exibir a receção mensal de uma dezena e meia de milhar de euros de avenças de empresas privadas, jurando ser tudo pelo engenho dos filhos, que não é de a gente se pôr a arranjar crises. Se calhar até pode, como anunciava com presciência Trump em 2016, despejar uns tiros sobre alguém na Quinta Avenida (ou na Avenida da Liberdade).

Como nos asseverou o próprio Luís Montenegro na sua comunicação, efetuada em nome da transparência mas sem direito a perguntas, está tudo bem. Se há conflitos de interesses? Pode haver, mas resolvem-se não participando, ele que chefia o governo, “nos respetivos processos decisórios”. E o homem que no dia da demissão de Costa falou de “compadrio”, “corrupção”, “manipulação” e “mentiras” disse-nos agora confiar que foi isso, assumir conflitos de interesses, que “fizeram todos os que nos antecederam nestas funções”. Porque, exorta-nos, “temos de confiar nas pessoas e nas instituições.” Palavra de honra.

Fernanda Câncio

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