Se aceitarmos a tese de que a Operação Marquês é o caso judicial mais importante desde o 25 de Abril, por estar em causa a suspeita de um primeiro-ministro em exercício ter sido corrompido, então seria de esperar que o Estado e a sociedade manifestassem essa importância de forma inequívoca, tangível, objectiva, concreta. Por exemplo, teríamos visto os agentes da Justiça responsáveis pelas investigações, e pelas decisões judiciais que se seguiram, a blindarem os seus procedimentos contra qualquer suspeita de enviesamento e/ou politização da justiça e/ou abuso de poder. Tal como, por exemplo, teríamos tratamentos jornalísticos e académicos que procurassem as melhores informações para se poder chegar às melhores conclusões neste tempo em que se foi e vai decidindo em tribunais se o arguido e depois acusado chegará, ou não, a ser julgado.
Aconteceu exactamente o oposto. O caso nasce num contexto judicial já politizado, com uma década de campanhas negras e assassinatos de carácter, e a opção do Ministério Público em Novembro de 2014 foi a de utilizar esse histórico moralmente tóxico para violar os direitos constitucionais de Sócrates, e assim poder continuar a violá-los durante os meses e anos que se sabia irem inevitavelmente embrulhar o processo até ao seu desfecho, fosse ele qual fosse. Daí se ter feito uma detenção para gerar “choque e pavor”, e também se fez o simultâneo lançamento público de calúnias com carimbo de “factos apurados pelas autoridades” em cima da detenção para se impor, dias depois, a prisão sem que alguém ousasse questionar essa violência — que hoje sabemos ter sido apenas para o castigar, supremo objectivo político dos mandantes, e para o investigar, dado não haver realmente prova alguma de corrupção na posse dos procuradores nem o mínimo perigo de fuga. Essa estratégia teve a aprovação directa de Joana Marques Vidal, e o apoio explícito da maioria parlamentar, do Governo e do Presidente da República de então. Pretendia-se destituir Sócrates, face à comunidade, de qualquer vestígio de presunção de inocência. De caminho, colava-se essa culpabilidade dada como irremissível e diabólica ao PS que acabava de escolher Costa para secretário-geral e partia para um ano eleitoral. Parecia um plano perfeito, e quase que funcionou na perfeição.
Assim como se pode sentir ódio ao volante, ou na reunião do condomínio, ainda mais facilmente se pode sentir ódio político. Quem o sente em relação a Sócrates, ou ao PS, ou à esquerda, jamais abdicará do triunfo transitado em odiado de o considerar culpado. Para esta gente, é indiferente o que os tribunais decidam, não perdem tempo a esperar pelo que se apure no final das contas. A sentença está dada, e de cada vez que a repetem desfrutam do êxtase facínora do linchamento. Para outra gente, que convictamente estiver perplexa por não conseguir entender qual a verdade na origem da captura e tortura de Sócrates, há um exercício que podem começar a praticar. Este: estar atento ao que os políticos e jornalistas caçadores de socráticos, mais os caluniadores profissionais, dizem sobre o acto, ou actos, de corrupção supostamente na origem do dinheiro numa das contas de Carlos Santos Silva. Pois, exacto, não dizem nada. Não dizem nada de nadinha de nada. E não dizem porque sabem que se podem queimar se disserem alguma coisa. É que não há nada para dizer. Ou seja, depois das milhões de horas e dos milhões de euros a vasculhar e revolver tudo em que Sócrates tocou ao longo da vida, não se descobriu qualquer vestígio de corrupção. Os Torquemadas apenas fustigam o alvo com teorias da conspiração nebulosas, fantásticas, mágicas. Querem-no condenar não porque saibam que algum crime de corrupção tenha ocorrido mas apenas porque ele foi apanhado. E agora dá para se ser cobarde sem perigo, à molhada.
É que a questão é estupidamente simples. A ecologia social que levaria Ricardo Espírito Santo a corromper José Sócrates sem que mais ninguém do Governo e do BES (pelo menos) estivesse envolvido, e sem que tal gerasse testemunhos ou provas directas, não existe neste mundo. Nem nos outros.
Do blogue Aspirina B
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