Anotemos brevemente os factos. Só os factos, por favor. O Estado português começou por manipular a distribuição do processo e fraudar a escolha do juiz. Não realizou o sorteio que a lei exige e transformou o inquérito num jogo viciado - uma jaula de ferro com o juiz de um lado e o procurador do outro.
Depois, nomeado o juiz e já seguros de si, deram início ao vendaval de violência e de abusos que durou os quatro anos de inquérito. O procurador ordenou a detenção no aeroporto, que foi transmitida em direto nas televisões. Em seguida, o juiz decretou prisão preventiva, alegando perigo de fuga, quando o visado estava a entrar no país, não a sair. No despacho escreveu assim: “Tal promoção, (a de prisão preventiva) a pecar não será por excesso.” Exatamente assim, com estas palavras.
O Sistema Judicial ratificou, o jornalismo aplaudiu e a política calou-se perante a barbaridade. A partir daí seria uma luta solitária.
Há várias formas de contar a história do processo. Uma delas é a da mentira.
Mentiram tanto, e mentiram durante tanto tempo, que se transformaram eles próprios na Mentira, com M grande.
Mentiram quanto ao “TGV”, mentiram nas “casas da Venezuela”, mentiram na “Parque Escolar”, mentiram na “OPA da Sonae”, mentiram em “Vale do Lobo”, mentiram quanto à “proximidade a Ricardo Salgado”, mentiram no “apartamento de Paris”, mentiram na chamada “fortuna escondida”. A espiral demoníaca da mentira e da violência funciona por retroalimentação - mais mentira implica mais violência, e mais violência necessita de mais mentira.
Dez anos depois, a decisão instrutória, (que está em vigor, embora sob recurso), considerou que nenhuma das acusações tem mérito para subir a julgamento. Todas elas eram “fantasiosas” ou “especulativas” ou “incongruentes”. Nenhuma tem fundamento. E, por favor, prestem atenção a este detalhe - a decisão judicial não diz respeito à ausência de provas, mas de indícios.
Vejamos agora de outro ângulo. A história do processo é também a história da vertiginosa e contínua mudança na acusação.
Em 10 anos, o Estado fez três acusações diferentes. A primeira acusação foi apresentada em setembro de 2017 com uma alegação principal de corrupção para ato lícito.
Quase quatro anos depois, como já referi, a decisão instrutória destruiu toda a acusação. Nesse momento nasceu uma segunda acusação - o juiz Ivo Rosa transformou o alegado testa de ferro em corruptor ativo e mudou o crime: agora já não é corrupção para ato lícito, mas corrupção sem ato.
Três anos depois o Tribunal da Relação derrubou esta segunda acusação, considerando-a ilegítima, ilegal e baseada numa “alteração substancial de factos”. Nesse mesmo ano, nesse mesmo tribunal, nasceria, então, a terceira acusação - invocando um “lapso de escrita”, o tribunal considerou que, afinal, a verdadeira acusação é de corrupção para ato ilícito.
Portanto, e em síntese: 10 anos e três acusações diferentes de corrupção - a primeira para ato lícito, a segunda sem ato, a terceira para ato ilícito.
A crónica do processo é a da metamorfose da acusação - derrubada uma, nasce outra; derrubada a segunda, nasce uma terceira. Vale tudo para salvar a face do Ministério Público. Vale tudo para alargar os prazos de prescrição. Vale tudo para manter o processo vivo - “Se não foste tu, foi o teu pai”. Nunca terá fim.
A fabricação desta terceira acusação merece ser contada. Foi assim: em 2024, três juízas consideram que a acusação inicial (aquela que foi apresentada em 2017) continha um “lapso de escrita “. Assim sendo, dizem elas, as alegações que indicavam crimes de “corrupção para ato lícito” deveriam ser lidas como querendo significar “corrupção para ato ilícito”. O erro era tão óbvio que o anterior juiz deveria ter corrigido.
Acontece que o “lapso” nunca foi referido durante toda a fase de instrução - nem nos interrogatórios, nem no debate instrutório. Nunca foi invocado pelo Ministério Público. Naquela sala do tribunal, durante três anos, ninguém ouviu falar daquele lapso.
Ainda mais: a 21 de Novembro de 2018 a equipa de procuradores entregou ao tribunal um documento destinado a corrigir “alguns lapsos de escrita”. Quinze páginas de lapsos, mas não esse. Não, nunca houve lapso de escrita algum. O lapso de escrita é a última mentira do Processo Marquês. A última fraude.
Finalmente, o tempo.
Dez anos de violência e de arbítrio. Dez anos de prisão na opinião pública. Dez anos em que o sistema criminal português se comportou como na ditadura, prendendo e difamando um inocente, enquanto escolhia o juiz do inquérito que melhor servisse o Ministério Público.
Nem presunção de inocência, nem direito de defesa, nem igualdade de armas - prazos imperativos para o cidadão; prazos meramente indiciativos para o Estado. Na verdade, os prazos de inquérito há muito que deixaram de indicar seja o que for, na medida em que deixaram simplesmente de existir, não por vontade do Parlamento, mas por vontade do Ministério Público, que decidiu apagar esse artigo do Código de Processo Penal. Diferentemente do que para aí dizem, a ameaça à separação de poderes vem da usurpação de funções do poder político pelo poder judicial, não o contrário.
No entretanto, o jornalismo cumpriu o seu papel. O jornalismo divulgou, o jornalismo justificou, o jornalismo branqueou - manobras dilatórias são as dos advogados, não existem manobras dilatórias do Estado. O adiamento dos prazos de inquérito, o adiamento dos prazos de instrução, o incumprimento de qualquer tipo de prazo pelo Estado é visto, pelo jornalismo, como a procura da “verdade material” ou como resposta à chamada “dificuldade em provar”, ou ainda como forma de ultrapassar a costumeira “falta de meios”.
Para o jornalismo português há sempre um qualquer fim social que justifica a selvajaria do Estado e a quebra das mais elementares garantias individuais. Para o jornalismo, o Estado nunca demora, só a defesa, só o advogado, só o cidadão tem interesse no atraso. A queixa por ausência de justiça em tempo razoável, apresentada em 2017, nunca foi julgada - mas nunca o jornalismo referiu este facto. Nunca. É como se não existisse. Se tens o atrevimento de te queixar de atrasos na Justiça, então justiça é que não obterás. Difícil imaginar maior perversidade.
A história do Processo Marquês não é a de um processo de direito comum, mas de um processo de exceção. O Processo Marquês nunca foi um processo judicial, mas uma armação política. A sua razão de ser nada teve a ver com justiça, mas com política - impedir a minha candidatura a Presidente da República e evitar que o Partido Socialista ganhasse as Eleições Legislativas de 2015. A única diferença face ao recente Processo Influencer é que, há 10 anos, não se esqueceram de escolher o juiz. A diferença que faz escolher o juiz.
Seja como for, neste momento, no Processo Marquês, não existe acusação (anulada em 2021), nem pronúncia (anulada em 2024) - mas a perseguição continua. A operação de lawfare segue à risca os procedimentos: manipularam a escolha do juiz, fabricaram acusações falsas e estapafúrdias, incumpriram todos os prazos e violaram o segredo de justiça, por forma a alimentar o jornalismo e fazer dele o seu principal aliado.
O lawfare é assim: não se destina a ganhar um melhor lugar na mesa de negociações - é uma guerra de extermínio. Em Portugal dura há 10 anos.
Opinião21 novembro 2024 às 00:28
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