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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Um padre a cantar contra a ditadura:

 

Um dos discos emblemáticos da editora Orfeu é o EP com quatro canções que o então Padre Fanhais lançou em 1969, no ano da sua polémica participação no programa televisivo Zip-Zip, com que então o novo presidente da RTP, Ramiro Valadão, tentava demonstrar a abertura política da ditadura prometida por Marcelo Caetano.

Fanhais chegou a esse programa através de um contacto estabelecido por José Afonso, que fora proibido de se apresentar no Zip-Zip.
Francisco Fanhais conhecera José Afonso depois de ter sido colocado em 1968 na paróquia do Barreiro, em cujo liceu foi professor de Moral e Religião. Nessa cidade operária o jovem padre despertou para a realidade social e política do país, para a exploração desenfreada do trabalho humano que ali podia ver e para a repressão das ideias pela ditadura.
Conta Eduardo M. Raposo, no seu livro “Canto de Intervenção”, que a participação que o Padre Fanhais teve na gravação do Zip-Zip (o programa era um talk show com público, gravado ao sábado, e era transmitido à segunda-feira) foi toda cortada pelos serviços de censura. Segundo Raposo, Carlos Cruz e os outos produtores e apresentadores do Zip-Zip ameaçaram acabar ali mesmo com o programa, caso esse corte total se verificasse.
O receio de que o fim abrupto do Zip-Zip suscitasse um escândalo nacional, dada a popularidade das emissões (dizia-se que o país parava para ver o Zip-Zip), levou a censura a reverter a decisão e a autorizar a passagem de duas das quatro canções gravadas, mantendo-se, porém, o corte de tudo o que Francisco Fanhais dissera ao público durante a sua atuação.
Um padre a cantar na televisão canções contra a guerra, como foi o caso de “À Saída do Correio”, um poema de António Cabral que Fanhais musicou sobre uma mãe que recebeu uma carta da Companhia onde o filho prestava serviço militar, foi algo que teve um grande impacto e colocou Fanhais no grupo de cantores de intervenção da época a que se chamavam “baladeiros”, por cantarem baladas acompanhando-se eles próprios à viola – uma forma barata e tecnicamente simples de dar espectáculo, em que a consequente carência harmónica não diminuía a popularidade das canções por causa do teor sociopolítico da mensagem das letras, que atraia na época enorme atenção.
Fanhais alinhou com a sua poesia, a sua voz e a sua viola em inúmeras sessões que essa geração de “baladeiros” foi fazendo.
No livro de Eduardo M. Raposo que referi são publicadas reproduções de documentos da Direção dos Serviços de Espectáculos sobre a atividade de Fanhais. Um deles, datado de 23 de abril de 1970, diz o seguinte:
“Verifica-se, com certa frequência, a realização de espectáculos – algumas vezes até clandestinos – com intenções nem sempre desprovidas de tendências de carácter político social. Nesses espectáculos, têm sido apresentadas canções cujas letras não foram submetidas à apreciação da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos. Está, neste caso, a maioria das ‘baladas’ que traduzem ideias de contestação, de pacifismo, de reivindicações sociais, como forma de luta contra as instituições vigentes e sobretudo contra a posição portuguesa no Ultramar”.
O relatório recomenda depois que não sejam concedidos vistos a autorizar os espectáculos destes artistas e lista alguns. O primeiro é o Padre Fanhais, seguindo-se Zeca Afonso, José Barata Moura, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire.
O primeiro disco que Fanhais gravou foi para a editora Orfeu, nesse ano de 1969 em que se apresentou no Zip-Zip. A fotografia da capa do disco seria também a fotografia da capa do número um de uma revista que ficaria também na história da música política em Portugal: a Mundo da Canção.
Talvez a cantiga mais conhecida desse trabalho seja a composição e interpretação ingénuas, típica dos baladeiros desse tempo, de um poema de Sebastião da Gama, a Cantilena, escrito em 1947, no qual a alegoria de um rouxinol a quem cortaram as asas e o bico servia para denunciar, em 1969, a realidade da opressão da ditadura do Estado Novo sobre a juventude portuguesa.
CANTILENA
Cortaram as asas
ao rouxinol
Rouxinol sem asas
não pode voar.

Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver.
Para ouvir esta emissão de Panfletos, clicar aqui:
ORFEU, PADRE FANHAIS E "CANTILENA"
Pedro Tadeu

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