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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Fadiga das forças ucranianas provoca “uma mudança no clima político em Kiev”: os ucranianos querem negociações (902º. dia de guerra):

Na última semana, as forças russas conseguiram impor os terceiros maiores avanços desde abril em território ucraniano. As sondagens entre a população e os comentários dos analistas fazem adivinhar uma mudança na vontade política, a favor das negociações. Eis os destaques do 902º. dia de guerra.

Os avanços russos, de cerca de 57 quilómetros quadrados, no espaço de uma semana são os terceiros maiores registados desde abril, depois de as forças de Moscovo terem obtido apenas ganhos modestos em junho, refere a Reuters.

Os ataques russos estão a aumentar a pressão sobre o centro logístico estratégico de Pokrovsk, na região de Donetsk, de acordo com autoridades ucranianas. Vagas de bombas guiadas e de infantaria levam a alguns dos maiores ganhos territoriais de Moscovo desde a primavera. Com o aumento da pressão, desencadeou-se também uma maior fuga de civis. Os pedidos de evacuação aumentaram cerca de dez vezes nas últimas duas semanas, adianta o jornal “The Guardian”.

As forças russas estão a utilizar aviões de guerra e fogo de artilharia para apoiar ondas de ataques de infantaria na área perto de Pokrovsk, disse ainda um porta-voz da Guarda Nacional da Ucrânia. “Estes ataques nem sempre são apoiados por veículos blindados; são muitas vezes ataques de infantaria”, disse Ruslan Muzychuk, apontando também qye bombardeamento por aviões de guerra russos começa a ter impacto. “É uma ameaça significativa… porque as frentes de Pokrovsk e Toretsk estão a receber uma grande parte dos ataques aéreos diários realizados.” As forças russas têm avançado constantemente em várias frentes na região de Donetsk, realizando ataques particularmente ferozes perto de Pokrovsk. As tropas de Kiev são, em comparação, escassas.

O ministro da Defesa russo declarou que as suas forças capturaram cinco localidades na região de Donetsk, na semana passada. A utilização de aviões de guerra pela Rússia para disparar bombas guiadas foi crucial para as táticas de campo de batalha de Moscovo. Em vez de perfurarem a defesa ucraniana, os militares russos estão a repeli-la. Avançam até 200 metros todos os dias usando esta tática. O fornecimento de caças F-16, dos EUA à Ucrânia, poderia perturbar esta dinâmica, mas, para já, essas operações são improváveis, dado o risco que representariam para os novos pilotos que operam aeronaves dispendiosas.

A mais recente ofensiva de grande escala da Rússia na Ucrânia está em curso há 10 meses. Por um lado, não levou ao colapso das defesas ucranianas, e os ganhos territoriais do Kremlin ficam muito aquém dos objetivos desejados. Por outro lado, durante todo este tempo, as Forças Armadas Ucranianas nem sequer tentaram tomar a iniciativa, confiando, em vez disso, na defesa passiva e na retirada lenta. As forças de Kiev querem esgotar o Exército russo, infligindo o maior número possível de perdas, antes de formarem novas unidades e depois passarem à ofensiva. Já o tentaram fazer por duas vezes: em 2022 (com sucesso) e em 2023 (sem sucesso).

A fadiga começa a pesar em ambos os lados. Volodymyr Zelensky já admite - ainda reconhecendo que é uma questão “muito, muito difícil” - a realização de um referendo para concessão de territórios à Rússia, a fim de atingir-se a paz. “Acho que é uma grande mudança”, diz ao Expresso Raphael Piliero, assistente de investigação de estratégia e política de defesa no Centro Belfer de Ciência e Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School. “A proposta de paz original de Zelensky, não só excluía a perda de qualquer território, como também excluía as próprias negociações com Putin. No entanto, isto é uma mudança, reconhecendo que pode existir um mundo onde a Ucrânia aceite perder algum território. Embora ambos os lados tenham articulado continuamente reivindicações maximalistas, isto pode ser um sinal de que tanto a Rússia como a Ucrânia estão a perceber que nenhum deles será capaz de alcançar tais posições no campo de batalha.” Moscovo também já deu sinais de que estaria preparada para negociar, apesar de Putin questionar a legitimidade do Presidente Zelensky.

Quanto aos EUA, o mantra sempre foi “nada sobre a Ucrânia sem a Ucrânia”, lembra Raphael Piliero “Se a Ucrânia estivesse disposta a mudar a sua posição, os EUA apoiariam quase certamente qualquer acordo negociado que a Ucrânia queira - e a que não seja forçada -, uma vez que poria fim à guerra, e, em última análise, deixaria a Ucrânia em posição vitoriosa, por ter frustrado a tentativa da Rússia de apagar a Ucrânia do mapa.”


Mas o Presidente Zelensky sabe que um grande segmento da população se oporia vigorosamente à cedência de território por parte da Ucrânia. “Se concordasse com isto em algumas futuras negociações de paz, provavelmente seria destituído do cargo”, reflete Walter Dorn,professor de Estudos de Defesa na Canadian Forces College, em Toronto. “Necessitará de maior legitimidade para a concessão, e esta só poderá partir do próprio povo ucraniano. Assim, poderia dizer aos seus adversários que o povo ucraniano decidiu, e não ele pessoalmente, desistir formalmente do território.”

A maioria dos ucranianos acredita que as autoridades devem começar a negociar com a Rússia para acabar a guerra desencadeada pela invasão russa em fevereiro de 2022, conforme revelou, na sexta-feira, uma sondagem financiada pelos EUA e Suécia. Segundo o estudo de opinião, realizado em maio pelo Instituto Internacional de Sociologia em Kiev, 57% dos ucranianos defendem o início das negociações entre Kiev e Moscovo, mas 38% opõem-se.

Esta foi a primeira sondagem publicada desde o início da guerra em que a maioria dos ucranianos é a favor da abertura de negociações para pôr fim ao conflito. Ao mesmo tempo, 66% dos inquiridos afirmam que a Ucrânia deve recuperar todos os seus territórios, incluindo a Crimeia e as áreas nas regiões orientais de Donetsk e Luhansk. Por outro lado, 74% e 76%, respetivamente, rejeitam a renúncia da Ucrânia às suas aspirações de aderir à NATO e à União Europeia no quadro de um hipotético acordo de paz com a Rússia.

“É claro que a Ucrânia não precisa de ceder formalmente o território, mas, num futuro acordo de paz, poderá ter de reconhecer o controlo de facto do território por parte da Rússia, sem alterar as fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1991”, explica ao Expresso Walter Dorn. “Penso que o Presidente Zelensky está a tentar preparar a população ucraniana para um eventual acordo de paz que implicará algumas concessões à Rússia. Isto não significa que as forças ficariam desmotivadas porque a quantidade de território que a Rússia controlaria seria ainda determinada no campo de batalha. Cada quilómetro quadrado que a Ucrânia defende significa que o território não cai em mãos russas. É claro que as duas partes podem acordar algumas trocas de terras.”

Mark Cancian, conselheiro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um think tank em Washington, e antigo conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano, nota que “Zelensky está a tentar dificultar que sejam os estrangeiros a forçar concessões territoriais”. Assim, um referendo “seria, pelo menos, um atraso processual e, a realizar-se, resultaria provavelmente numa forte declaração por parte do eleitorado de que não quer perder território”. Cancian não acredita no desânimo das tropas, mas diz que “é evidente que os apoiantes internacionais da Ucrânia estão a começar a ficar cansados”. A Ucrânia sente-o; está a acontecer “uma mudança no clima político em Kiev”, descreve, em declarações ao Expresso, Kelly Grieco, investigadora do Reimagining US Grand Strategy Program do think tank Stimson Center.

“A Ucrânia está em guerra há vários anos, por isso é compreensível que haja algum grau de fadiga”, comenta Grieco. “Diria que esta mudança não se deve à falta de vontade política ou popular ucraniana, mas a um cálculo sobre as realidades estratégicas e operacionais." Os Estados Unidos são o principal fornecedor militar da Ucrânia, mas, dependendo do resultado das eleições presidenciais, Kiev poderá perder o seu apoio. "Da mesma forma, o campo de batalha está em grande parte num impasse. A certa altura, ambos os lados – Ucrânia e Rússia – serão obrigados a perguntar-se se é melhor chegar a um acordo, em vez de continuar a lutar contra um impasse dispendioso.”

Bulent Gokay, analista de relações internacionais da Universidade de Keele, no Reino Unido, também considera ser normal que o ânimo esteja em baixo entre as forças ucranianas, após três anos de guerra opressiva. “De acordo com uma sondagem de opinião recente, quase um terço dos ucranianos está agora preparado para fazer concessões territoriais à Rússia se isso conduzir a um rápido fim à guerra de agressão russa. É pouco provável que o crescente cansaço da guerra de um número cada vez maior de ucranianos seja revertido tão cedo.”

Zelensky já não se opõe agora a que a Rússia seja convidada para uma cimeira de paz em novembro, antes das eleições nos EUA, aponta também Bulent Gokay. “Dado que atualmente as forças russas estão a ganhar impulso na frente, e a ajuda dos aliados ocidentais não chega tão rapidamente como a Ucrânia exige, o Presidente da Ucrânia, Zelensky, lançou esta ofensiva diplomática para encontrar uma forma de acabar com a guerra.”

Expresso

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