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sábado, 21 de setembro de 2024

Os homens devem estar loucos:

 (Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/09/2024)

Atravessámos décadas de Guerra Fria a evitar cuidadosamente que qualquer dos lados fosse levado a sentir-se ameaçado ao ponto de perder a cabeça e carregar no botão. E agora andam a brincar com o fogo, testando até onde irá o sangue-frio e o juízo de alguém que eles próprios classificam como louco e assassino. Quem são os loucos, então?


No “Fórum TSF”, discutindo-se o envio de armas de longo alcance para Kiev, com a finalidade de serem utilizadas contra território russo, e as possíveis represálias de Moscovo a essa escalada da guerra, um ouvinte, corajosamente sentado na sua secretária, opinava, seguro, que nada havia a temer: mesmo que Putin levasse avante a sua ameaça de recorrer a armas nucleares, e se bem que o arsenal russo seja o maior do mundo, a superioridade tecnológica ocidental garantiria a vitória final. Uma douta opinião, por muitos partilhada, mas que assenta em duas presunções, uma abusiva, a outra simplesmente idiota. A presunção abusiva é a habitual, a de que cada vez que Putin abre a boca está a ameaçar com armas nucleares. Curiosamente, nunca o fez, pelo menos explicitamente, mas são sempre os media e os dirigentes ocidentais que põem a ameaça nuclear na boca dele: ou porque lhes interessa para efeitos de propagada ou porque acham mesmo, e temem, que essa possa ser a resposta fatal a cada novo passo do engajamento da NATO na guerra da Ucrânia. O que Putin disse desta vez foi que o fornecimento de mísseis de longo alcance a Kiev por parte de países membros da NATO, acompanhado da licença do seu uso contra território russo, equivaleria a uma declaração de guerra da NATO à Rússia, a qual “acarretaria consequências”. Sem perder tempo, essas “consequências”, tal como no passado, foram imediatamente traduzidas pela ameaça de utilização da arma nuclear. Quanto à presunção simplesmente idiota do ouvinte da TSF, ela consiste em imaginar que uma guerra nuclear na Europa, entre a NATO e a Rússia, se limitaria ao território da Ucrânia e que dela restariam vencedores e vencidos.

Como é que chegámos aqui, a este patamar de insanidade geral, com os nossos governantes a acumularem passos cada vez mais próximos do caminho de uma terceira guerra mundial, sem que os povos sejam esclarecidos e consultados? Que Putin o faça com o seu povo, ninguém estranha: é um ditador. Mas, e as democracias? Ainda agora vimos o novo PM inglês, o trabalhista Keir Starmer, correr a Washington para suplicar a Biden que junte os ATACMS americanos aos Storm Shadow ingleses e aos mísseis franceses para uma tempestade de fogo sobre os céus da Rússia. Acrescentou que se trata apenas de “ajudar a Ucrânia a enfrentar o inverno” e a conseguir prosseguir a guerra em pé de igualdade. O louco não só quer continuar a guerra sem fim à vista como ainda acredita, ou finge acreditar, que a Ucrânia pode vencer a guerra, mesmo quando já não dispõe de soldados que queiram combater e civis que queiram continuar a viver debaixo de bombardeamentos e escombros. Como disse o Presidente mexicano, López Obrador, a mensagem do Ocidente para Kiev continua a ser “vamos continuar a guerra, com as nossas armas e os vossos mortos”. No que à Inglaterra respeita, esta tem sido, aliás, uma política consequente e consensual: foi o antigo PM Boris Johnson quem, ao segundo mês de guerra, foi expressamente a Kiev dizer a Zelensky que não assinasse o acordo de paz com a Rússia, já negociado em Ancara, pois que era possível correr com a Rússia da Ucrânia à força, com os meios que os países da NATO poriam à sua disposição. O mesmo Boris Johnson que depois de sair de Downing Street se dedicou a correr mundo dando conferências sumptuosamente pagas para defender a continuação da guerra, onde os ucranianos combatiam em defesa das propostas e dos honorários dele… Mais tarde, foi o secretário da Defesa americano, Lloyd Austin, quem foi a Kiev reforçar a mensagem ocidental, explicitando que o objectivo final da guerra da Ucrânia não era apenas correr com os russos de lá, mas enfraquecê-los de tal maneira que de futuro não mais se atrevessem a aventuras militares: fora de combate.

Nesta estratégia de tudo pela guerra, nada pela paz, a Inglaterra andou sempre um passo à frente dos Estados Unidos, mas, com a surpreendente colaboração de Macron, foram conseguindo arrastar Biden, hesitando sempre primeiro, acabando por aceitar depois: conselheiros militares, partilha de informações sensíveis, sistemas de mísseis, tanques de última geração, F-16 e — é só esperar uns dias — os mísseis de longo alcance para atacar território russo. Tudo o que Zelensky tem pedido, mais tarde ou mais cedo, tem obtido. Só lhe falta, e já o lamentou, não dispor de armas nucleares — o que é uma ironia histórica, pois que, quando a Rússia deu a independência à Ucrânia, a grande preocupação ocidental foi justamente que Moscovo não deixasse para trás, em mãos ucranianas, as armas nuclea­res que ali tinha estacionadas.

A guerra da Ucrânia, evitável desde antes do início da invasão russa, tem sido a ruína da Europa: arruinamo-nos para comprar armas aos Estados Unidos e depois fornecê-las à Ucrânia (70% delas), vimos a Alemanha, o motor económico europeu, gripar devido ao fim das importações de petróleo e gás russo com a sabotagem dos oleodutos Nordstream (onde pára o inquérito, aberto há mais de ano e meio?), pagámos a guerra com inflação, com energia mais cara, com o fim do mercado importador russo, com dez passos atrás nas políticas de descarbonização, com uma descolagem brutal na competitividade da economia europeia face às dos Estados Unidos, China ou Índia: está tudo no Relatório Draghi, só não se diz porquê. Mas, graças ao alinhamento militante de uma imprensa submissa a acrítica como nunca tinha visto, a própria palavra paz tornou-se símbolo de rendição, quando não de conivência com Putin, e até, numa curiosa inversão de valores, um sinal de falta de solidariedade com os ucranianos que já morreram e os que ainda vão morrer. Um por um, todos os que ousaram tentar ou sugerir um acordo de paz para pôr fim à guerra, foram politicamente exterminados, as suas palavras deturpadas, as suas intenções vilipendiadas: Erdogan, o ex-PM israelita, Xi Jinping, o Papa Francisco, Lula da Silva, o Presidente do México, quem quer que não professasse o credo da guerra para sempre e até à vitória final. Nunca tantos se deixaram arrebanhar tão facilmente durante tanto tempo.

Para nos assustar e convencerem da sua razão, dizem-nos que se Putin não for contido, acabará sentado em Kiev, e não ficará por aí, como garantiu Kamala Harris. Nenhum dado, nenhum relatório de serviços secretos, nenhuma tese de observadores independentes, nenhuma análise séria e lógica confirma tal dedução, mas isso o que interessa? Mais depressa e com mais razões Putin concluirá que os mísseis de longo alcance disparados contra a Rússia não se deterão em objectivos militares ou estratégicos e rapidamente estarão a visar Moscovo ou São Petersburgo — e, aí sim, entrará em vigor a doutrina nuclear russa, que é conhecida e idêntica à das potências nucleares ocidentais. Então, o que esperam, o que querem estes loucos que nos governam? Atravessámos décadas de Guerra Fria a temer que qualquer estúpido acidente de percurso levasse alguém, de qualquer dos lados, a carregar no botão vermelho. A evitar cuidadosamente que qualquer dos lados fosse levado a sentir-se ameaçado ao ponto de perder a cabeça e carregar no botão. E agora andam a brincar com o fogo, testando até onde irá o sangue-frio e o juízo de alguém que eles próprios classificam como louco e assassino, como disse Biden. Quem são os loucos, então?

Outra das teses da propaganda dos discípulos da NATO é a de que qualquer negociação implicaria a cedência de territórios ucranianos. Porquê? Porque Putin o disse. Disse, sim, como Zelensky disse que exigiria a devolução da Crimeia. Qualquer negociação começa assim, com posições extremadas de ambos os lados, e o papel dos negociadores é levá-los a perceber, neste caso, que um acordo no meio termo é melhor para ambos do que uma guerra sem fim.

É muito fácil estar sentado aqui, no extremo ocidental da Europa a pregar que a NATO dispare os seus mísseis e não se preocupe com as armas nucleares de Moscovo. Mas se ele estivesse numa aldeia da Ucrânia, à mercê de bombardeamentos diários, a ver a sua casa destruída, os seus familiares e vizinhos mortos e uma vida sem outro futuro pela frente, quem sabe não acabaria a desejar a vitória de Trump nas eleições americanas? “A vida é uma história contada por um idiota”, escreveu Shakespeare.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Do blogue Estátua de Sal 

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