Na mata da Quinta dos Farelos há
duas árvores muito, muito antigas. Uma oliveira de tronco torcido e caprichoso
e um belo sobreiro aprumado como sentinela do lugar.
Conversam, sobretudo nos dias de
vento, em que o rumorejar das folhas faz ambas estremecerem de caloroso
contentamento.
A oliveira é bastante mais velha
e o sobreiro considera-a uma elegante bisavó. Foi a oliveira quem o sossegou no
primeiro descortiçamento. Não sei se todos os meus leitores sabem que os
sobreiros têm uma vestimenta no tronco, chamada cortiça, que os humanos muito
apreciam para utilizar nas suas diversas atividades.
Não fora a oliveira, o então
jovem sobreiro, teria apanhado valente susto quando lhe vieram, pela primeira
vez, cortar essa capa com a qual se sentia quente e protegido. Corria o mês de
agosto e a árvore bisavó contou-lhe que, na sua longa vida, tinha tido mais
vizinhos sobreiros e já conhecia o destino que lhes estava traçado: de nove em
nove invernos algum dos homens da família Sobro viria limpá-lo da grossa pele
que lhe iria depois crescer sempre, mais e mais, a cada ano que passava.
_E quem são os Sobro?-perguntou o
sobreiro ainda desconfiado.
_Os Sobro são uma família quase
tão antiga como eu. De pais para filhos conservam a mesma profissão.
Chamam-lhes corticeiros. São faladores e engraçados. Usam uma ferramenta, o
machado, e quando te cortam a casca que te cobre o tronco, vais sentir-te mais
fresco e aliviado. Já viste passar por aqui aquelas simpáticas ovelhas felpudas
que o pastor e o cão Aluado levam ao ribeiro a matar a sede?
_Claro que sim, já os vi. E até
penso que o Aluado já entendeu que não aprecio nada as mijadelas que me fazia
quando eu era mais gaiato. Agora deixou-se disso, ganhou-me respeito! Que
mereço! Vou pelo menos em vinte e cinco e cinco invernos de vida, não é verdade
avó oliveira?
_São essas as minhas contas. É a
idade que te dou.
_Então essa família dos Sobros só
trabalha de longe em longe? Eu tenho-os visto por aqui a apanhar os meu frutos,
as lindas bolotas que me caem quando o frio chega, por aquelas alturas em que
os homens colhem as uvas e as levam em cestos para fazer uma bebida chamada
vinho que muito os faz cantar!
_Pois, na verdade os teus frutos
são muito apreciados, tanto que, quando eu era uma jovem até dos teus frutos os
homens faziam pão! Hoje já descobriram outras formas mais variadas de se alimentarem,
mas há animais que às tuas bolotas chamam um petisco!
_Isso sei eu, gosto muito que
aqueles porcos pretos e os primos, de um cor de rosa delicado, venham até aqui
limpar o chão à minha volta. Às vezes até cócegas nas raízes me fazem e tenho
de sacudir-me de riso!
_Ai! _gemeu a oliveira_os jovens
como tu a tudo acham graça. Qualquer novidade os faz divertir, seja a música da
gaita de beiços dos rapazes, seja a aragem que as saias das raparigas fazem ao
sentar-se aos nossos pés a comerem os seus alimentos e a borbulharem.
_As raparigas borbulham?
-perguntou muito surpreendido o sobreiro.
_Eu chamo-lhe borbulhar. Elas
lançam assim a modos que lamentos, grasnidos e gorgolejos, eu até desconfio que
aquilo é a forma delas conversarem, assim como nós dois nos falamos!
_ E já deves ter observado que a
mim até me vêm aligeirar dos galhos mais fraquitos_acrescentou o sobreiro-
fazem-me uma tosquia em regra e depois levam aqueles meu ramos em cestos
grossos. Parece-me que com esses ramos alimentam o lume com que cozinham, pois
aqui mesmo ao lado, já vi humanos a fazer umas fogueiras onde dançam chamas com
que aquecem as mãos e o cheiro lembra-me o cheiro do recheio do pão de centeio
que trazem quando vêm trabalhar.
Ilustração: O Sobreiro, de
Beatriz Lamas Oliveira
És um entusiasta das tuas
capacidades. Ai! juventude que também já foi condição minha! Sabes lá o quanto
os meus frutos também são apreciados! -volveu a idosa oliveira.
_Aquelas bolinhas verdes que os
humanos vêm apanhar quando faz tanto frio que até a água que cai do céu vem
branca e esfarrapada?
_Isso mesmo, amigo sobreiro!
Chamam-se azeitonas e são muito apreciadas.
_Mas ele batem-te com varas para
as tirarem dos teus ramos! Não sentes dores danadas?
A oliveira estremeceu e riu.
_ Aquilo são como sapatadas de
gatinho novo. Não me assustam e fazem-me ficar feliz por poder ajudar os homens
que delas fazem o belo azeite com que cozinham os alimentos. Estou aqui há
quase dois mil invernos. Quantas mais azeitonas me levam mais eu cresço e
rejuvenesço!
_ Muito me ensinas avó oliveira.
Não fossemos nós e os humanos não resistiam à passagem dos tempos quentes,
frios ou temperados. Se tu és a minha avó eles, humanos, são filhos nossos que
temos de cuidar!
Ilustração: Quinta dos farelos,
de Beatriz Lamas Oliveira
1 Março, 2020
Do Jornal Tornado

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