Quatro por dia. Agressões. Eu
sei, quatro agressões assim, diárias, é mera estatística e uma só é uma
tragédia. Estou, como sabem, a plagiar o camarada José Estaline, cuja frase era
sobre algo mais definitivo: "Uma morte é uma tragédia; um milhão de
mortes, uma estatística." Então, como Estaline foi um dos maiores
assassinos da história (interessado, pois, em desvalorizar as mortes por
atacado) e porque uma agressão acaba mais em drama do que em tragédia, refaço a
conclusão inicial: as quatro agressões diárias que refiro são um mero drama.
Mas que drama!
Com os números oficiais contados
até setembro do ano passado, já havia mais agressões a médicos, enfermeiros e
outro pessoal hospitalar do que em todo o ano anterior. Em 2018: 953 agredidos;
em nove meses de 2019: 995 agredidos. No local de trabalho! Com a
insensibilidade que me permite a estatística, sem caras nem nomes, o patamar de
médicos e enfermeiros agredidos ultrapassou, no ano findo, os quatro dígitos:
mil casos/ano.
Com a insensibilidade que me
permite o plano geral, sem cara nem nomes, disse eu? Exato. Usar linguagem
estatística em casos destes é, para mim, uma grosseria insuportável. Basta-me a
foto de uma mulher cansada, de bata de quem cuida, com idade de quem passou
muitos anos em diretas, com olhar absurdido (deixem-me esta palavra porque é
exatamente o que lhe acontece, ao olhar), olhos cercados de negro e boca retalhada
por um murro para eu saber o que lhe aconteceu: levou nas trombas. No lugar
onde trabalhava. Durante o trabalho. Trabalho vital.
Desculpem-me, profissionais de
saúde sujeitos a situações de stress é no guiché ao lado. Aqui eu falo de quem
levou nas trombas. Não prodigalizo gentis afagos, em crónica, a quem a pátria
insulta e abandona no dia-a-dia. Quatro por dia. Sei de quem falo, cara a cara,
nome a nome, cada um, homem ou mulher que me deram a bênção de se cruzar
comigo.
Do médico portuense que me
escreveu por me ter visto a pegar na mão do meu pai, no Hospital de Santo
António, à enfermeira que na Alfredo da Costa me mostrou a minha filha,
passando por todos, quer dizer, por cada um que com o seu saber me salvou.
"Me salvou", querem saber o que exatamente faz aqui o pronome
pessoal, oblíquo e átono? Isto: eu a admirar a doutora Lena na urgência do
Santa Maria, a distribuir saber e amor aos outros - e a rebentar o seu coração
(não, não chegou à reforma).
Ora bem, 995 médicos, enfermeiros
e outros trabalhadores dos hospitais multiplicados por 1/4 (dos três meses que
faltavam em setembro para perfazer o ano), em 2019 deu 1326 trabalhadores a
levar na tromba. No seu lugar de trabalho. Local público e iluminado. Resumindo
os danos, conhecem-se os agredidos, os agressores, as testemunhas, o lugar, a
hora e o tamanho dos maus-tratos. E sabe-se que os crimes acontecem há anos, há
dezenas de anos e vão continuando... Espantoso.
Confesso, não sei o que fazer
para combater o tráfico de droga, porque o poder dos cartéis é enorme. Nem a
corrupção na banca, a opacidade é poderosa. Nem os gangues, a violência é
temível. Nem as grandes negociatas, o silêncio é de ouro... Confesso, para
esses crimes organizados, mancomunados e escondidos não sei o que fazer. Mas
para crime de que venho falando, cometido às claras, por poucos, sem plano
prévio e, no entanto, com a gravidade e a duração que atrás expus, não tenho
explicação. Só espanto.
Suponhamos que - já não digo 1326
casos por ano, ou quatro por dia, mas suponhamos - um juiz leva um murro depois
de dar uma sentença. Não falo, repito, de 1326 murros ou insultos por ano, ou
quatro por dia, coisa só de mera estatística. Falo de um, um só caso, de um
juiz levar um murro no seu trabalho. Drama imenso, assim o acho também.
Felizmente, logo nos dias seguintes, o governo, o Estado, as leis, os partidos
e os parlamentares - quem determina a ordem - logo fariam que o primeiro caso
fosse o último, e que o único nunca mais se repetisse. Quem o duvida? Porque a
necessidade de respeito pelos juízes não o permitiria. Felizmente.
Então, porque não com quem nos
trata da Saúde?
Ferreira Fernandes
Opinião
No DN
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