Foi há mais de 15 anos, em
Khujand, bem no norte do Tajiquistão. Não havia elevadores naquele modesto
hotel, ainda tributário da era soviética. Era, no entanto, o melhor da cidade.
Eu chegara, como sempre (nunca
aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram
que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de uma viagem
longa e de um dia de trabalho relativamente intenso, "passei-me" e
reclamei.
A rececionista, com pinta de
"aparatchik" da era antiga, num país onde as coisas não tinham mudado
assim tanto, confrontada com o meu mal-estar, sem me dar grande confiança,
disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter.
Passados largos e irritantes
minutos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade tinha ultrapassado
há muito os 80 anos, apresentou-se com a minha mala.
Senti-me incomodado. Então aquele
senhor idoso tinha subido as escadas, com mais de 20 quilos na mão, para evitar
o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever
dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade.
O homem mirou a nota de cinco
dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez
sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos.
Sabia que a gorjeta tinha sido
boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao
jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país,
revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente:
"Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da
reforma mensal do homem!"
Na manhã seguinte, ao sair do
quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para
transportar de novo a minha mala. Deduzi que devia estar por ali já há algum
tempo.
Com um imenso sorriso, num tom
levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me:
"Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com
a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano
ao ombro.
À chegada ao lóbi, recordo, como
se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das
minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam,
num silêncio grave, a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da
terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um
"favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da
véspera?
À entrada para a carrinha, ainda
hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma
gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei
a dar ao homem outra nota de cinco dólares.
Sorriram-lhes os olhos e
despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo,
enfático: "Portugaliya! Portugaliya!".
Por 10 dólares, a imagem do nosso
país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia
Central.

Sem comentários:
Enviar um comentário