Tudo que é suspeito deve ser investigado. Com respeito pelos direitos
de quem não pode ser beneficiado, mas também não perseguido ou prejudicado, por
ter sido primeiro-ministro
1 - O singularíssimo último episódio do já de si muito singular
"caso Sócrates" impõe-me fale dele(s), assente a poeira que levantou.
Já me apeteceu fazê-lo, mas desisti dado o curto espaço não permitir tratá-lo
nas suas várias complexas vertentes, nem fundamentar bem o que escreva. Não
posso esquecer a formação jurídica, e muito menos não ser coerente com décadas
de jornalismo praticado como uma forma de cidadania com especiais
responsabilidades. Corro, no entanto, o risco de abordar pela rama três pontos deste
caso rodeado por um ambiente pouco propício à sua apreciação serena.
José Sócrates (JS) sempre suscitou paixões e ódios. Mais ódios do que
paixões, mormente na comunicação social. O que se reflete no tratamento
jornalístico dado por alguns media ao seu processo, não assente num trabalho
próprio de investigação, análise, questionamento, antes alimentando-se de sistemáticas
violações do segredo de justiça, cujo objetivo em geral consiste em criar na
opinião pública a convicção de que o arguido é culpado, para lá de imputações
concretas com valor probatório penal.
2 - E este é um primeiro ponto não despiciendo: a natural tentativa, em
simultâneo com a prisão de suspeitos, de "mobilização" pela acusação
da opinião pública a seu favor, nos processos mais mediáticos que envolvem
poderosos tradicionalmente impunes. Desde as "mãos limpas", na Itália
dos anos 90, ao "mensalão" e ao "lava-jato", no Brasil de
hoje. Porque, quando os investigados estão ligados a poderosas redes criminosas,
incluindo de corrupção, os investigadores consideram-no indispensável para: a)
a investigação não ser abafada, e, sobretudo, b) levar às denúncias de outros
membros dessas redes, através dos "arrependidos" ou da "delação
premiada".
Ora, no caso Sócrates não se verifica qualquer destas situações, nem
existe sequer a imputação da existência de qualquer rede. E a frequência de
violações de segredo de justiça, de par com o constante lançamento de novas
suspeitas, indicia antes desorientação por parte de uma acusação aparentemente
sem a devida consistência. Tendo o arguido o indiscutível direito de também
publicamente se defender e pronunciar a esse respeito.
3 - O último episódio: o MP propôs, e o juiz de instrução aceitou, que
JS passasse a prisão domiciliária, com vigilância eletrónica através de um
dispositivo cuja colocação exige permissão do detido. Ora, JS recusou-a, como
já se sabia iria acontecer. Face a isso, e podendo tal tipo de vigilância ser
substituído por outro, sem qualquer aumento dos perigos de fuga (inexistente) ou
de perturbação do processo, impunha-se manter, para quem já está preso há oito
meses, aquela menos grave medida de coação.
A utilização de "meios técnicos de controlo à distância" na
"obrigação de permanência na habitação" é, nos termos do art.° 201, 3,
do CPP, uma simples faculdade, e num caso como o do Sócrates tem como única
vantagem ser menos dispendioso. Assim, mantê-lo encarcerado, além de ser uma
decisão errada, contribui para a ideia de que estará a ser vítima de tratamento
injusto, se não discriminatório; como contribui para a vitimização e a aura
que, dizem, o próprio JS procura.
4 - Nada disto exclui outra evidência: mesmo só os factos imputados a
JS e que ele aceitará como verdadeiros (os vultuosos empréstimos do amigo, a
forma como disporia do seu dinheiro, etc.) são muito insólitos e estranhos, se
se quiser suspeitos. E tudo que é suspeito deve ser investigado com rigor, até
ao fim. Mas com integral respeito pelo Direito e pelos direitos do arguido. O
cidadão JS não pode ser beneficiado por ter sido primeiro-ministro; como não
pode ser perseguido ou prejudicado por isso mesmo. ?E logo após a sua prisão
apareceram "acusações" contra ele tão absurdas como a de haver
ajudado uma empresa portuguesa a fazer negócios na Venezuela; ou a de, já fora
do Governo, haver telefonado ao vice-presidente de Angola para idêntico efeito!
No fim se verá quais os factos apurados e a sua relevância penal. E se,
caso penalmente irrelevantes, são ou não de molde a justificar um severo juízo
de condenação ético-política. Porque devem-se distinguir as duas coisas e tal
juízo bastará para condenar quem tenha tido um percurso político com a
relevância do de José Sócrates.
José Carlos de Vasconcelos, Comentário publicado na VISÃO 1164, de 25
de junho
Domingo, 28 de Junho de 2015
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