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sábado, 23 de maio de 2015

Envolver o bastão com "Os Irmãos Karamazov"

O livro é grosso, quase mil páginas. Já lá irei. Entretanto, comentadores disseram que a culpa do subcomissário que bate num pai com filhos à volta é, no fundo, a do governo para nos convencer das virtudes da repressão. Outros, que a culpa é do Benfica, que tem adeptos que vão a casa alheia partir a mobília e assaltar os faqueiros. Houve, ainda, quem acusasse o género humano, por atacado. Então quando se lhe dá uma farda e um bastão, o bicho homem é terrível - dizem...
Pois, não sei. Se os governos em geral e os clubes em geral têm um gostinho especial por espicaçar subcomissários, esse lado do assunto pouco me interessa. Confesso, gosto de ver nos homens, o homem. E neste homem, o subcomissário, o que há para saber é que não leu o livro certo.
Por isso não vou pela generalização humana da violência nem pela sua versão especial fardada. Não que ambas sd violências não existam, mas não sou sociólogo. Nasci jornalista, peço desculpa porque isso acarreta um montão de vícios, mas é assim. No momento em que um pai foi atirado ao chão em Guimarães por um polícia, eu estava no Sumbe, Angola. Parei o carro numa estação de gasolina e um guarda, de farda e de bastão, veio falar comigo depois de me ter longamente observado. "É doutor?", perguntou-me. Tinha os olhos cansados, febris. Que não, disse eu. Mas ele insistiu: "Doutor de consulta? Não é doutor, mesmo?" Não, eu não era médico. "Obrigado, então", disse-me ele, afastando-se, derrotado. Eu estava de balalaica branca, talvez daí o engano. Eu não tinha culpa nenhuma, mas entristeceu-me tanto ter-lhe acendido uma esperança falsa... Isto para dizer que me habituei a ver, num homem, um homem. Mesmo quando com farda e bastão.
Pois, não sei, já disse, sobre a quem mais, além do subcomissário, atribuir as culpas da agressão policial a um pai com os dois filhos e um velho familiar ao lado. Já a culpa do subcomissário é fácil de ver. Então, eu que não gosto de fazer sociologia dos atos dos homens resolvi lavrar a sentença. Crime e castigo. Por falar nisso, o subcomissário devia ser condenado a ler o tal livro grosso que refiro no começo da crónica. Os Irmãos Karamazov, do russo Fiódor Dostoiévski. Freud disse que era o maior dos romances. Acho que era o psicanalista a falar: o pai Karamazov, homem rico e imoral, e o seu filho primogénito, Dmitri, partilham uma amante. Mas para a minha sentença o assunto é outro e está a meio do romance. Qualquer tipo que transporte uma arma consigo devia ler essas páginas, só uma vintena. Qualquer tipo com um poder que pode ser caprichoso: um polícia com cassetete, um patrão com trabalhadores a prazo, um atleta com esteroides nos bíceps...
Nessas vinte páginas, Aliócha Karamazov vai à casa de Snieguirióv, um antigo capitão caído na miséria, pedir desculpa. O mais novo dos irmãos Karamazov, piedoso (e o herói do romance, segundo Dostoiévski), quer falar do que ele chama "o assunto", acontecido oito dias antes. Dmitri, o seu irmão impetuoso e gastador, agredira o capitão num cabaré. Depois, arrastou-o até à rua puxando-o pelas barbas. Um grupo de pequenos estudantes saíam da escola e, entre eles, vinha Iliúcha, de 9 anos, o filho do pobre Snieguirióv.
Aflito, o garoto correu para os dois homens. É o próprio capitão agredido que conta a Aliócha Karamazov: "Quando ele me viu no chão, agarrou-se a mim, gritando: "Paizinho! Paizinho!", com os seus braços prendeu a mão e beijou-a, a mesma mão que... Lembro-me da cara dele nesse momento, nunca me esquecerei." Primeiro, a humilhação, depois a revolta. Quando Iliúcha volta à escola, os colegas gozam-no. Da barba arrancada do pai ( "pano do chão", escarnecem os garotos) à aflição do filho. Este deixa de ir à escola. O pai propõe irem lançar papagaios, mas ele amarra-se no silêncio. Até um grito: "Paizinho, como ele te humilhou!" E desatou a chorar.
Li Os Irmãos Karamazov adolescente, numa cidade que não se poupava a gritos e murros. Dei ambos. Mas escrevi-me com letras inapagáveis: quando te irritares com um homem, garante que ele não tem um filho perto. Além da sentença já por mim ditada, esta história triste de Guimarães devia ser redimida por olhares de reconhecimento. De cada vez que passar por aquele polícia que afastou o filho da humilhação do pai - nunca vi um escudo policial ser tão sabiamente usado -, a cidade deveria dizer-lhe: obrigada, por ter uma arma e saber ler.
FERREIRA FERNANDES
Hoje no DN

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