O livro é grosso, quase mil páginas. Já lá irei. Entretanto,
comentadores disseram que a culpa do subcomissário que bate num pai com filhos
à volta é, no fundo, a do governo para nos convencer das virtudes da repressão.
Outros, que a culpa é do Benfica, que tem adeptos que vão a casa alheia partir
a mobília e assaltar os faqueiros. Houve, ainda, quem acusasse o género humano,
por atacado. Então quando se lhe dá uma farda e um bastão, o bicho homem é
terrível - dizem...
Pois, não sei. Se os governos em geral e os clubes em geral têm um
gostinho especial por espicaçar subcomissários, esse lado do assunto pouco me
interessa. Confesso, gosto de ver nos homens, o homem. E neste homem, o
subcomissário, o que há para saber é que não leu o livro certo.
Por isso não vou pela generalização humana da violência nem pela sua
versão especial fardada. Não que ambas sd violências não existam, mas não sou
sociólogo. Nasci jornalista, peço desculpa porque isso acarreta um montão de
vícios, mas é assim. No momento em que um pai foi atirado ao chão em Guimarães
por um polícia, eu estava no Sumbe, Angola. Parei o carro numa estação de
gasolina e um guarda, de farda e de bastão, veio falar comigo depois de me ter
longamente observado. "É doutor?", perguntou-me. Tinha os olhos cansados,
febris. Que não, disse eu. Mas ele insistiu: "Doutor de consulta? Não é
doutor, mesmo?" Não, eu não era médico. "Obrigado, então",
disse-me ele, afastando-se, derrotado. Eu estava de balalaica branca, talvez
daí o engano. Eu não tinha culpa nenhuma, mas entristeceu-me tanto ter-lhe
acendido uma esperança falsa... Isto para dizer que me habituei a ver, num
homem, um homem. Mesmo quando com farda e bastão.
Pois, não sei, já disse, sobre a quem mais, além do subcomissário,
atribuir as culpas da agressão policial a um pai com os dois filhos e um velho
familiar ao lado. Já a culpa do subcomissário é fácil de ver. Então, eu que não
gosto de fazer sociologia dos atos dos homens resolvi lavrar a sentença. Crime
e castigo. Por falar nisso, o subcomissário devia ser condenado a ler o tal
livro grosso que refiro no começo da crónica. Os Irmãos Karamazov, do russo
Fiódor Dostoiévski. Freud disse que era o maior dos romances. Acho que era o
psicanalista a falar: o pai Karamazov, homem rico e imoral, e o seu filho primogénito,
Dmitri, partilham uma amante. Mas para a minha sentença o assunto é outro e
está a meio do romance. Qualquer tipo que transporte uma arma consigo devia ler
essas páginas, só uma vintena. Qualquer tipo com um poder que pode ser
caprichoso: um polícia com cassetete, um patrão com trabalhadores a prazo, um
atleta com esteroides nos bíceps...
Nessas vinte páginas, Aliócha Karamazov vai à casa de Snieguirióv, um
antigo capitão caído na miséria, pedir desculpa. O mais novo dos irmãos
Karamazov, piedoso (e o herói do romance, segundo Dostoiévski), quer falar do
que ele chama "o assunto", acontecido oito dias antes. Dmitri, o seu
irmão impetuoso e gastador, agredira o capitão num cabaré. Depois, arrastou-o
até à rua puxando-o pelas barbas. Um grupo de pequenos estudantes saíam da
escola e, entre eles, vinha Iliúcha, de 9 anos, o filho do pobre Snieguirióv.
Aflito, o garoto correu para os dois homens. É o próprio capitão
agredido que conta a Aliócha Karamazov: "Quando ele me viu no chão,
agarrou-se a mim, gritando: "Paizinho! Paizinho!", com os seus braços
prendeu a mão e beijou-a, a mesma mão que... Lembro-me da cara dele nesse
momento, nunca me esquecerei." Primeiro, a humilhação, depois a revolta.
Quando Iliúcha volta à escola, os colegas gozam-no. Da barba arrancada do pai (
"pano do chão", escarnecem os garotos) à aflição do filho. Este deixa
de ir à escola. O pai propõe irem lançar papagaios, mas ele amarra-se no
silêncio. Até um grito: "Paizinho, como ele te humilhou!" E desatou a
chorar.
Li Os Irmãos Karamazov adolescente, numa cidade que não se poupava a
gritos e murros. Dei ambos. Mas escrevi-me com letras inapagáveis: quando te
irritares com um homem, garante que ele não tem um filho perto. Além da
sentença já por mim ditada, esta história triste de Guimarães devia ser
redimida por olhares de reconhecimento. De cada vez que passar por aquele
polícia que afastou o filho da humilhação do pai - nunca vi um escudo policial
ser tão sabiamente usado -, a cidade deveria dizer-lhe: obrigada, por ter uma
arma e saber ler.
FERREIRA FERNANDES
Hoje no DN
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