O Eurogrupo trata das finanças europeias. O presidente do Eurogrupo é o
ministro das Finanças holandês Jeroen Dijsselbloem, e bem: afinal, a Holanda
andou pelo mundo fora sem fitas ideológicas. Fez uma Companhia das Índias
Ocidentais para, quando embarcou, virar à direita, e fez uma Companhia das
Índias Orientais para virar à esquerda. Nos porões, a Holanda levou o livro de
contas e quando regressou não deixou memória nem língua por onde andou, mas, há
que dizê-lo, enquanto por lá esteve ajudou o mundo a funcionar. A história da
Holanda no mundo, desde a barganha de Nova Iorque à saída da Indonésia, com a
invenção das Bolsas no meio, cabe num bom livro de contabilidade. Deve e haver,
com muito superavit. O ministro holandês das Finanças era, pois, a pessoa geneticamente
mais preparada para chegar, ontem, a Atenas e discutir o que há para discutir:
"Falemos então dos vossos pagamentos..." Respondeu-lhe o ministro
grego das Finanças, Yanis Varoufakis: "Para começo de conversa, ficas a
saber que não me reúno com a troika."
Se calhar, afinal, o ministro holandês não era o mais geneticamente
preparado para falar da dívida grega. Para compreender este episódio histórico
contemporâneo há que ler o livro Com os Holandeses, do transmontano Rentes de
Carvalho. Ele ensina-nos que dois holandeses que se chocam de bicicleta, caem,
levantam-se, não se cumprimentam e vão à vida. Fossem europeus do Sul
desfaziam-se em desculpas ou andavam à tareia. Isto é, estragavam a
contabilidade (perdiam tempo ou acabavam na enfermaria). Essas formas de ser,
vociferante ou gentil, não cabem na equação quadrada de dois mais dois igual a
quatro holandesa. Ora a Grécia de hoje ainda está pior do que a clássica, está
muito além do deve e haver baterem certo.
Rematou o ministro holandês ao colega: "Ignorar os acordos não é o
bom caminho a trilhar." Na verdade, não eram colegas, nem o mesmo planeta
partilham. E não é o grego que é extraterrestre. Se há choque entre as duas
bicicletas, quem estava a trilhar o carreiro natural da sociedade capitalista
moderna era Varoufakis. Acordos na Europa? Mas se a confusão é a norma! Deixou
de haver entre os cidadãos e os Estados a noção dos direitos adquiridos. A
união dos países, feita no pressuposto da solidariedade, é sabotada pela
cupidez dos mais ricos - por exemplo, Luxemburgo e Holanda, de onde são
Jean-Claude Juncker e Jeroen Dijsselbloem, os dois mais recentes patrões do
Eurogrupo (coincidência?) -, que chupam os impostos das grandes empresas dos
países mais pobres... Acordos? Até me admirei de que o espartano grego não
tivesse saltado da bicicleta e puxado os caracóis ao holandês.
Se o ministro holandês quer boas normas, boas contas e dar lições sobre
o bom sistema capitalista (que o é, não conheço melhor) que venha a Lisboa.
Esta é que está a precisar dele, apesar de lhe bater palmas incondicionais. E
se houver confronto entre bicicletas, não lhe proponho riscos, é a Marques
Mendes que o holandês deve pedir contas. Vocês sabem, aquele energúmeno
condensado que numa noite de sábado, na SIC, se permitiu fazer o mais fundo
ataque à maior invenção holandesa, a Bolsa.
Relembro. Mandatado por Passos, Marques Mendes foi à televisão
anunciar, nas vésperas, o fim do BES. Parece que esse fim tinha de ser, não
sei. Sei é que o tal Mendes, apesar da carreira feita num partido capitalista,
foi um antibolsista primário. O bom banco, disse ele, tinha de ser extirpado
dos maus. Os bons eram os trabalhadores do banco e os depositantes - "os
que não têm culpa nenhuma", disse ele. E os maus, sublinhou, eram todos os
que investiram, fossem milhões ou pequenas poupanças de uma vida. Repito, não
sei se a solução para o BES podia ser outra, até porque o seu fim é a prova de
que os tempos modernos não são para ser tratados como se vivêssemos tempos
normais. Sei é que Mendes expressou, naquela noite, esta doutrina: investir no
mercado de capitais é mau e deve ser castigado. Sei que ele disse que os
pequenos investidores, além de ficarem sem nada, deviam ficar com um sentimento
de culpa.
Talvez amanhã o capitalismo grego volte à normalidade de que Jeroen
Dijsselbloem gosta. Há esperança: a violência com que os gregos o mandaram
pastar aparenta-se, afinal, à vitalidade do regime de mercado. Mas para
Portugal a situação é mais grave: tem de se ajudar a esquecer a sabotagem
bovina, oportunista e explicitada contra o capitalismo popular. O holandês tem
um trabalho mais longo aqui (apesar de julgar estar entre adeptos) do que em
Atenas.
FERREIRA FERNANDES
Hoje no DN
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