O regulamento geral das prisões, em vigor desde o último Governo de
Sócrates, e assinado de cruz pelo incumbente, tem destas coisas: as encomendas
podem não chegar, a correspondência é lerda, e só hoje nos permite revelar a
troca de cartas entre o recluso número 44 do Estabelecimento Prisional de Évora
e o antigo presidente Mário Soares, o primeiro a visitá-lo, de surpresa, ao
quarto dia de reclusão.José Sócrates foi detido a 21 de novembro, há 38 dias.
Sem culpa formada e sem direito a entrevistas, está preso preventivamente por
suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. A justiça
tem os seus tempos e há de falar. Até lá, temos uma singela troca de cartas. A
de Sócrates, a 7 de dezembro, o dia de aniversário de Soares, a outra na véspera
de Natal, quando este responde com palavras de encorajamento e a mesma estima
com que o abraçou naquela manhã carregada de novembro.Eu estava lá e vi, a
escrita permite-me a liberdade da imaginação: na cadeia de Évora, o parlatório
é esconso e sombrio, mesas e cadeiras de plástico que em dias previstos no
regulamento se hão de preencher de ansiedade e acanhamento - reclusos de um
lado, as visitas do outro -, palavras e esperança sussurradas. A um canto, o
velho leão da nossa democracia - cá fora, há de exclamar "infâmia!" e
outras imprecações indignadas. No outro, um Sócrates surpreso, o mesmo homem
que, vai fazer 10 anos em 20 de fevereiro, recolheu o voto de quase 2,6 milhões
de portugueses. Apertam-se num longo e comovido abraço. E nem preciso de escutar-lhes
a conversa, para ver que entre braços está a metade de nós que não suporta a
ideia de mantermos aperreado na cadeia um daqueles em quem mais confiámos na
nossa geração. A outra metade, essa, desconfia ou deseja que ele apodreça na
enxovia prisional. E já ergue na praça o pelourinho justiceiro, esse
instrumento de manipulação política, típica de estados falhados, mais a mais
quando há eleições à vista. A cadeia de Évora é, também ela, a metáfora de um
país dividido que se prepara para entrar num novo ano que todos desejamos novo
e melhor. Assim seja!
29.12.2014 AFONSO CAMÕES
No JN

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