Com a devida vénia, cito aqui uma frase escrita na última edição do
jornal "Expresso" por Henrique Monteiro, na crónica que publica na
última página do semanário. "Ao preço a que temos pago esta crise não
quero mais um país mixuruca (como dizem os brasileiros). Quero um país decente.
Um país competente, com uma administração pública adequada às necessidades, sem
boys a cada esquina, sem corrupção, sem discursos inflamados e extremistas de
reviralhismo de café. Quero um país europeu". É impossível não estar de
acordo com isto, dada a extensão gigante do que nos tem sido pedido.
Sabemos todos que o quotidiano dos portugueses é hoje o que há uns anos
ninguém se atreveria a prever. É verdade que os mais realistas (então
apelidados de miserabilistas, para dizer o mínimo) foram falando dos erros de
estratégia e de trajetória que sucessivos governos iam cometendo. Mas ninguém
julgaria que pudéssemos chegar ao ponto em que estamos.
E em que ponto estamos? Estamos no ponto em que a palavra decência,
forte no conteúdo, saiu do dicionário, sendo substituída por outra que serve
para justificar uma coisa e o seu exato oposto: a inevitabilidade. É em nome do
"inevitável" que se atropelam direitos uns atrás dos outros. É em
nome do "inevitável" que jogamos um jogo em que as pessoas são meros
fatores de uma equação matemática em que, no fim do dia, o que verdadeiramente
interessa é que as colunas do Excel batam certo. É em nome do
"inevitável" que, para regressar a Henrique Monteiro, descemos ao
estatuto do país mixuruca. Absolutamente mixuruca.
Sim, porque só um país absolutamente mixuruca permite que os mais
fracos, os que mais sofrem, os que pouco ou nada têm possam ser ainda mais
fracos e sofrerem ainda mais. O texto que sustenta a manchete da edição de
domingo do "Jornal de Notícias" é o exemplo mais chocante dessa
realidade. É difícil imaginar pior. O que a jornalista Inês Schreck escreveu
não é um murro no nosso coletivo estômago: é um valente soco nas fundações de
um país que abana e ameaça cair. É uma vergonha.
Cito-a: "Há cada vez mais doentes oncológicos em grandes
dificuldades económicas. Não têm dinheiro nem para comer, pondo em risco a
própria recuperação. Os pedidos de ajuda disparam". Estamos, portanto, a
deixar morrer pessoas com cancro que não têm dinheiro para se alimentar, ou
para pagar as consultas e os medicamentos de que necessitam.
Cito o presidente do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa contra
o Cancro: "Há famílias inteiras que, de um dia para o outro, ficam na
miséria, porque o cancro atingiu o único elemento [do agregado familiar] que
trabalhava".
Cito o retrato dramático de uma dessas famílias: o pai está inválido e
desempregado, a mãe tem um cancro raro e hereditário em estado avançado e duas
filhas menores a seu cargo, sendo que uma delas também é doente oncológica.
Todos vivem agarrados a uma pensão que não chega aos 300 euros.
Cito, em conclusão, um país que se entretém com o "reviralhismo de
café". Cito um país que deve envergonhar-se de si próprio. Que não é
decente.
Publicado ontem no JN
Publicado ontem no JN
Sem comentários:
Enviar um comentário