Celebrava hoje noventa e três anos caso fosse vivo. Há um bom par de
anos que deixou este mundo. Recordo-o com eterna saudade. Uma lágrima vem
espreitar ao canto do olho mas envio-a logo à procedência. Dele só gosto de
recordar as coisas boas. Os conselhos que dava a mim e aos meus irmãos. Sei que
todo o ser humano tem virtudes e defeitos. Mas o meu pai tinha mais virtudes
que defeitos.
Passou uma vida de sacrifício para criar dez filhos. Trabalhava como um
desalmado. Mesmo assim o dinheiro ao fim da quinzena minguava sempre. Doze
bocas a comer e vestir-se dava muito trabalho. A minha mãe - coitada, há um bom
par de anos que não está entre nós - também ajudava no pouco que havia:
acarretar cestos de terra para a construção de uma qualquer casa, na lavoura, no
serviço doméstico na casa da D. Engrácia e depois a vender sardinha.
Nessa altura as sardinheiras eram mal vistas e adjectivadas. Dizia para
minha mãe. Porque não desiste! E ela retorquia. Porque a vida não o permite. Há
quem diga que quem vende a sardinha come a galinha mas como vês a nós não
acontece isso. Por isso o meu labutar para vos proporcionar uma melhor
alimentação. Compreendia isso.
Quantas vezes vi o meu pai a querer dormir e o efeito do clarão da
soldadura para soldar os pés das carteiras escolares não o permitia. O esbagoar
era constante. Não eram lágrimas pela miséria que se passava. Eram do trabalho
a que estava incumbido. Se fosse das da miséria eram um nunca mais acabar.
O meu pai era um pacato trabalhador num país prudente como gosta João
César das Neves. Também foi um cidadão obediente. Nunca viveu para além das
suas possibilidades e a viagem mais longa que fez foi ir a Lisboa em serviço e
esperar-me quando regressei do ultramar.
E teve outra grande obediência. Foi a de estar poucos anos reformado. Parece que adivinhava que se vivesse mais anos ia ter alguém a criticá-lo. Por isso a sua verticalidade.
E teve outra grande obediência. Foi a de estar poucos anos reformado. Parece que adivinhava que se vivesse mais anos ia ter alguém a criticá-lo. Por isso a sua verticalidade.
Estou a lembrar estes episódios e não sei se os meus irmãos estão de
acordo. Mas como não sou pessoa de ir pôr um ramo de flores na sua campa em
lembrança do seu aniversário faço-o com este pequeno e humilde texto.
Bendito o dia vinte e quarto de Setembro de mil novecentos e vinte.
Bendito o dia vinte e quarto de Setembro de mil novecentos e vinte.


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