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domingo, 1 de agosto de 2010

A minha partida para a guerra ultramarina (Angola):


Manhã de dezassete de Abril de mil novecentos e setenta e um, de sol quente, daquelas manhãs que apetecia ir à praia. Estou no barco Vera Cruz contemplando as pessoas ao longe a acenar-nos com os lenços em sinal de despedida. Antes fizemos um desfile e uma parada militar onde não faltou o discurso de partida, de boa sorte, a entrega de aerogramas que as senhoras do Movimento Nacional Feminino nos ofereceram.
Vera Cruz

O canudo do Vera Cruz dá o sinal de partida com três toques impressionantes, os lenços agitam-se com mais rapidez, ouvem-se gritos e choros de familiares de soldados, ainda bem que ali não tenho ninguém, se já é custosa a partida, mais seria, se tivesse ali algum familiar.
Deviam de ir no Vera Cruz uns dois mil soldados, o nosso destino era Angola. Quando já não avistávamos mais ninguém fomos chamados para nos ser distribuído os nossos aposentos, a mim calhou-me no porão. Nunca percebi como fui lá parar era dos soldados com mais tempo de serviço e talvez dos mais velhos do batalhão.
Quando fui mobilizado estava a cumprir serviço militar no C.I.C.A.1, à beira do Palácio de Cristal, hoje faz parte do hospital S. António. A maioria dos soldados era do quarto turno de setenta, eu do terceiro. Fui para o campo de treino militar de Santa Margarida, para incorporar a companhia 3341, do batalhão 3838, as companhias CCS, 3340 e 3342, também faziam parte do mesmo batalhão.
Campo de Instução Militar de S. Margarida

Era um estranho, a maioria dos soldados foram do R.I.2 de Abrantes. Eram conhecidos dos sargentos e oficiais, só por isso compreendi a minha ida para o porão. Na ida e volta para o porão, passava-se perto da cozinha e do depósito de géneros, era um cheiro insuportável, por esse motivo saía de manhã e só regressava quando ia dormir.
O barco Vera Cruz era imponente, estava um pouco abandonado, outrora um barco de transportar turistas, agora servia para transportar carne para canhão.
À medida que nos íamos distanciando avistávamos coisas que nunca tinha visto – golfinhos, baleias e peixe voadores. Todos os dias os meus colegas deitavam carga ao mar, eu felizmente nunca enjoei. Alguns punham-se em tronco nu a apanhar sol, ganharam bolhas de água nas costas e não conseguiam dormir.
À noite não tínhamos nenhum passatempo a não ser jogar à batota. Uma noite vi soldados sentados no chão do corredor a jogar à lerpa, não conhecia nenhum. Pedi autorização para jogar. Autorizaram.
O jogo começou-me a correr bem. A certa altura havia muito dinheiro em jogo, vários soldados lerparam. Foram dadas cartas para nova jogada, três soldados disseram que iam ao jogo e puseram a respectiva quantia, era o quarto a receber cartas e quando as recebi tinha lerpa real. Mostrei as cartas e quando me preparava para arrecadar o dinheiro foi-me dito para não lhe mexer. Disseram que não tinha nada que mostrar as cartas, devia deixar correr o jogo para outros lerparem. Argumentei que era assim que procedíamos na minha terra e quando olho para o lado estava o Matosinhos, era bem constituído fisicamente, soldado condutor auto – rodas, da minha companhia, que me deu um sinal para pegar no dinheiro. Eram três mil escudos, assim fiz. Ninguém repostou, sabiam que eu tinha razão. Passado pouco tempo acabou o jogo.
No total ganhei quase quatro mil escudos, em mil novecentos e setenta e um, era muito dinheiro, dei uns trocos ao Matosinhos. Passados uns dias uns colegas meus foram apanhados a jogar à batota e foram castigados com uma carecada, tive receio de me acontecer o mesmo, acabei por não mais jogar. A viagem decorria bem, aproximávamos de Luanda.

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