Só os portugueses e as portuguesas com mais ou menos 15 anos no dia 25 de Abril de 1974, hoje a rondarem os 65, podem ter memória crítica de algumas particularidades dos últimos estertores do Estado Novo, que viram cair. Rapazes e raparigas com menos idade, ou seja, as crianças desse tempo, talvez se lembrem de um pormenor ou outro. Assim sendo, torna-se evidente que a grande maioria dos nossos adultos no activo pouco ou nada sabem de um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século e que caiu de podre no dia em que os cravos floresceram nas espingardas dos soldados.
É evidente que há excepções. Basta pensar no grande número de livros, dissertações, escritos diversos e outros trabalhos, da autoria de historiadores e outros estudiosos. Mas, também é evidente que o número destes portugueses, representa “uma gota de água” num universo de milhões, a quem a escola, do pós-25 de Abril, deu diplomas, mas não deu cultura.
Só a chamada terceira idade, viveu ou sofreu toda essa indignidade. Por outras palavras, só os mais velhos, nas casas dos 70, 80 ou mais, como é o meu caso, que, na altura, somava 43 anos de vida, quase tantos, quantos os da ditadura, viveram e conheceram em pormenor a censura e a repressão. Só a “peste grisalha”, na deselegante expressão do deputado Carlos Peixoto do PSD, a quem o Estado garantiu uma pensão, mas, arrumou na prateleira dos reformados ou pensionistas, conheceu este sufoco.
Durante a minha infância e primeira adolescência, um lapso de tempo em que, como é natural, me não dei conta dos problemas sociais e políticos, viveu-se o tempo da chamada “regeneração nacional”, que abriu portas a um tempo de ditadura militar. Atribuindo as culpas do caos que se instalara no país, à política partidária e ao jogo do parlamentarismo, e encarnando um regime militar, antiparlamentar e progressivamente mais autoritário, passou-se, em pouco tempo, a uma “Ditadura Nacional”, num claro desafio ao parlamentarismo democrático.
O professor de Coimbra, Oliveira Salazar, que assumira a pasta das Finanças, em 1928, três anos antes de eu nascer, era exaltado pela propaganda do regime como o autor do “milagre financeiro”, com o equilíbrio das finanças públicas e a estabilidade do Escudo português. Num crescendo de importância pessoal, dominando, cada vez mais, as estruturas políticas e militares do novo regime, Salazar seria, em 1932, nomeado Presidente do Conselho de Ministros. Era o novo regime a afirmar-se como uma República Nacional e Corporativa, no dizer do manifesto da União Nacional de 1930.
A Constituição de 1933, concebida e elaborada por Salazar, coadjuvado por meia dúzia dos seus mais próximos apoiantes, permitiu o surgimento de um estado autoritário. Aprovada por referendo, numa população de cerca de um milhão e trezentos mil eleitores, sabemos hoje que as abstenções e os votos em branco contaram como votos a favor. Nesta nova Constituição foi notória o cerceamento do essencial dos direitos de cidadania. Por exemplo, no que se refere às liberdades de expressão, reunião e associação, esta lei fundamental era muito clara, ao dizer que seriam regulados por "leis especiais". Nascia aqui o “Estado Novo”, entendido como um regime corporativista de Estado, conservador, nacionalista e tradicionalista, colonialista, marcadamente antiliberal, antiparlamentarista e declaradamente anticomunista, como se comprova com o célebre decreto 27 003, publicado três anos mais tarde, em 1936, segundo o qual, para admissão e outras prestações de serviços na função pública, os candidatos tinham, obrigatoriamente, de declarar, com assinatura reconhecida, «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E este decreto dizia, ainda: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».
Reconhecidamente autoritário, o Estado Novo” manteve notada cumplicidade com a Igreja Católica e actuou, como fascista, ao criar a Legião Portuguesa, como uma organização paramilitar, e a Mocidade Portuguesa Masculina e Feminina, duas organizações juvenis, obrigatórias para crianças e adolescentes. Criou a sua própria estrutura de Estado e um aparelho repressivo, com destaque para a polícia política, de início, a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) substituída (apenas no nome) em 1945, pela PIDE (Polícia de Investigação e Defesa do Estado), as prisões e colónias penais. Após sucessivas revisões constitucionais, consentidas por uma Assembleia Nacional de partido único, incondicionalmente favorável a Salazar, a revisão de 1945, atribuiu, ao governo, a competência para legislar através de decretos-leis. E foi, mesmo, reconhecida, ao ditador, a capacidade de fixar a agenda dos trabalhos parlamentares.
A queda de uma cadeira, em 1968, afastou o ditador do poder que exerceu ininterruptamente com mão de ferro. A expressão Salazarismo que se confundia com Estado Novo, decorre do facto de todo o poder se ter centrado nas suas mãos. Apoiando a imprensa e as rádios que controlava ou lhe eram favoráveis e censurando ou ilegalizando as que ousavam opor-se-lhe, Salazar foi, por assim dizer, um rei quase absoluto no seio de uma República.
(Do Artigo que publiquei no jornal Público, no passado dia 17)

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