O bom vizinho pode ser um Estado. Tem cultura, história, interesses e uma ideologia própria. Não exige que os países ao lado - à direita, à esquerda, acima ou abaixo - pensem da mesma forma. Considera legítimo que cada um organize a sua casa como entender, desde que isso não implique tentar estragar a sua.
Durante muito tempo, o bom vizinho aceitou regras comuns do prédio: horários de silêncio, normas de convivência, compromissos mínimos de previsibilidade. Não porque abdicasse da sua soberania, mas porque acreditava que viver num sistema partilhado exigia limites mútuos. Nunca prometeu ser igual aos outros; prometeu apenas não os incomodar gratuitamente.
O bom vizinho manteve relações económicas e políticas com países de outros bairros - outras regiões do mundo - porque sabia que nenhuma nação vive apenas do seu quarteirão. Ainda assim, nunca recusou comércio, diálogo ou cooperação com os vizinhos mais próximos. Pelo contrário: sempre afirmou que preferia relações de proximidade, desde que fossem baseadas em respeito e não em tutela.
O que o bom vizinho sempre exigiu foi franqueza. Se houvesse conflito, que fosse declarado. Se houvesse desconfiança, que fosse dita. O que não aceitava eram cercos indiretos, pressões disfarçadas de moral, punições aplicadas sem negociação prévia. Estados, como pessoas, reagem mal a armadilhas.
Houve um momento decisivo na sua história: o bom vizinho rompeu com o seu passado político. O “divórcio” foi turbulento, reconhece. A primeira ordem interna deixou marcas, erros, conflitos reais. Mas o vizinho reorganizou-se, mudou instituições, reescreveu regras, casou-se de novo com uma outra configuração política. Muitos no prédio aceitaram essa mudança como um facto consumado da história.
Nem todos.
Um vizinho distante - poderoso, influente, mas que não vivia naquele prédio - decidiu que o passado nunca poderia ser ultrapassado. Tivera conflitos graves com a primeira ordem do bom vizinho e passou a exigir que a nova fosse permanentemente castigada por crimes que não cometera. Não aceitava reformas internas, nem compromissos novos. Exigia submissão total ou punição contínua.
O bom vizinho tentou negociar. Propôs tratados, mecanismos de segurança, garantias mútuas. Tentou “arrumar a casa” de forma definitiva. Mas cada gesto era lido como insuficiente, cada concessão como sinal de fraqueza. A pressão não diminuía; aumentava.
Foi assim que a boa vizinhança se deteriorou.
Gradualmente, o bom vizinho começou a fechar portas. Não porque tivesse mudado de natureza, mas porque percebeu que qualquer abertura era usada contra si. Outros vizinhos, receosos de desagradar ao vizinho distante, passaram a sancioná-lo: cortaram relações, congelaram contactos, adotaram um silêncio disciplinado.
O prédio tornou-se hostil.
Impedido de abandonar a sua casa - porque aquela casa é o seu território histórico, a sua identidade, a sua continuidade civilizacional - o bom vizinho procurou aliados noutros bairros. Não por afinidade ideológica automática, mas por necessidade estratégica. Quando a porta da frente se fecha, entra-se pela lateral.
O conflito com um vizinho direto agravou-se. Não começou ali, mas ali se materializou. O resto do prédio fingiu surpresa, ignorando anos de empurrões, cercos e provocações. O bom vizinho deixou então de ser descrito como “bom”. Passou a ser chamado de perigoso, imprevisível, agressivo - precisamente depois de ter sido isolado.
E, no entanto, do seu ponto de vista, algo permaneceu inalterado:
nunca exigira que os outros fossem como ele; apenas pedira que o deixassem existir sem ser permanentemente punido pelo seu passado.
Talvez tenha endurecido. Talvez tenha perdido a paciência. Mas não perdeu a convicção central: num sistema internacional que confunde convivência com submissão, até o bom vizinho acaba por aprender a trancar a porta.

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