
São sobejamente conhecidos os esforços de Kiev para envolver militarmente a NATO em território ucraniano, para fazer aquilo que a Ucrânia se tem mostrado incapaz. Isto é, recuperar o território ocupado pela Rússia e evitar o descalabro militar.
A irresponsável histeria a que se tem assistido nas chancelarias europeias decorrente dos 19 drones que aterraram em território polaco, no dia 10 de setembro, apresentada na forma de um ataque russo a território da NATO, merece uma análise informada, para se perceber exatamente o que aconteceu e esvaziar a argumentação de quem anda paranoicamente a empurrar a Europa para uma confrontação militar direta com a Rússia. De assinalar que não é a primeira vez que somos confrontados com este tipo de acontecimentos. Não seria a primeira operação ucraniana de falsa bandeira. Falamos, por exemplo, dos misseis S-300 ucranianos que caíram na Polónia, apresentados inicialmente como sendo um ataque russo.
Indo aos acontecimentos: (1) Os drones que aterraram em território polaco eram da família Gerânio e Gerbera, com um alcance máximo de 700 km e 600 km, respetivamente, e não transportavam carga explosiva; (2) a aterragem ocorreu em locais que distam até 300 km da fronteira oeste da Ucrânia com a Polónia, muito para lá do seu alcance máximo; (3) muitos deles foram reparados recorrendo inclusivamente a fita cola, indicando claramente a sua reutilização; (4) Para amplificar a dimensão da “tragédia” a comunicação social polaca publicou imagens de edifícios destruídos há dois meses por uma tempestade, atribuindo esses danos ao impacto dos drones; (5) Houve uma coincidência temporal entre a aterragem de drones de fabrico russo em território polaco e um ataque russo com drones e misseis à região oeste da Ucrânia.
Passemos então à análise. Medindo 700 km para leste, a partir do local de aterragem desses drones, encontramos território ucraniano controlado apenas por forças ucranianas. As forças russas mais próximas localizam-se a mais de 150 km de distância, para este. Teoricamente seria possível terem sido lançados de território bielorusso, mas isso é altamente improvável. Não aconteceu no passado, não se vislumbra uma razão lógica para ter acontecido agora. Perante este facto, os defensores da autoria russa, para sustentar o alcance superior ao alcance máximo, argumentam, sem o conseguir provar, terem sido adicionados depósitos de combustível suplementares aos aparelhos. Não há imagens de drones com os ditos depósitos. É um argumento de última hora falso a que recorreram à posteriori, para justificar uma “insuficiência” argumentativa que não tinham previsto.
Não foram utilizados “nesta operação” drones russos com carga explosiva porque esses explodem no momento do impacto, não sendo possível aos ucranianos recuperá-los, o mesmo não sucede com os drones de engodo e de reconhecimento, que nalguns casos não se desintegram e, ficando relativamente intactos quando atingem o solo, podem ser recuperados e reutilizados posteriormente.
O facto da Bielorrússia ter alertado as autoridades polacas para drones desgovernados que sobrevoavam o seu espaço aéreo, que poderiam aterrar na Polónia ou na Lituânia tem sido convenientemente desvalorizado. Esse aviso permitiu a Varsóvia responder prontamente e intersetar quatro dos 19 drones. O sempre oportuno e certeiro secretário-geral da NATO Mark Rutte não perdeu a oportunidade para afirmar que “na noite passada [10 de setembro] ficou demonstrado que somos capazes de defender o território da NATO e o seu espaço aéreo.”
A Bielorrússia afirmou ainda ter abatido alguns drones durante essa noite e ter desviado outros da sua rota por ações de guerra eletrónica. Esses drones foram lançados pela Ucrânia contra território russo tendo alguns deles sobrevoado o espaço aéreo bielorrusso. Não são os mesmos que penetraram na Polónia.
Também não foi divulgado pela comunicação social europeia o facto de a Polónia ter inclusivamente informado Minsk sobre a aproximação ao seu território de veículos aéreos não identificados provenientes da Ucrânia. Entretanto, Varsóvia recusou o convite de Moscovo para uma averiguação conjunta do incidente que permitisse estabelecer os factos. Antes de se dar o passo seguinte teria feito sentido falar primeiro com os russos para esclarecer a situação. Não se entende a falta de vontade do Governo polaco em clarificar o incidente. Talvez por não ser capaz de apresentar provas conclusivas. O facto de drones russos terem penetrado o espaço aéreo polaco não prova que se encontravam sob controlo direto russo.
Apesar da difícil sustentação da tese da agressão – a Rússia atacou a Polónia com drones sem carga explosiva, sem orientação para alvos específicos, Varsóvia foi notificada pela Bielorrússia da existência de drones desgovernados que podiam aterrar em território polaco – as reações de elevada estridência não se fizeram esperar. O presidente do Partido Popular Europeu, Manfred Weber, disse que “o ataque da Rússia não foi dirigido contra a Polónia, mas contra a UE: O ataque não é apenas contra a Polónia — a Rússia tem como alvo o nosso modo de vida, nomeadamente a liberdade, a democracia e o Estado de direito.” Numa escalada verbal absurda, o ministro dos negócios estrangeiros português vociferou a necessidade de “dar uma resposta dura à Rússia” sem elaborar o que poderia ser essa resposta e quem a iria dar.
O presidente Volodymyr Zelensky considerou a incursão dos drones russos um “ataque deliberado” de Moscovo à Polónia, o primeiro-ministro polaco Donald Tusk classificou-a uma “provocação em larga escala”. Como se isto não bastasse, a Polónia convocou reservistas em modo acelerado e projetou 40 mil soldados para a fronteira com a Bielorrússia, com quem fechou as fronteiras por tempo indeterminado. O presidente polaco Karol Nawrocki assinou uma resolução permitindo a projeção de forças da NATO em solo polaco.
O frenesim e a excitação polaca fizeram com que Varsóvia pedisse uma reunião de emergência do North Atlantic Council, invocando o Art.º 4.º, do Tratado do Atlântico Norte. Não obstante a paranoia instalada invocou-se o Art.º 4 e não o Art.º 5.º. A Aliança deliberou o reforço urgente do seu flanco leste, como se uma invasão russa estivesse iminente, o que se consumou através do lançamento da operação Eastern Sentry. Para além disso, Varsóvia convocou uma reunião do Conselho de Segurança da ONU e propôs à Assembleia-Geral uma declaração conjunta que acabou assinada por apenas 46 dos 193 estados-membros.
São sobejamente conhecidos os esforços de Kiev para envolver militarmente a NATO em território ucraniano, para fazer aquilo que a Ucrânia se tem mostrado incapaz. Isto é, recuperar o território ocupado pela Rússia e evitar o descalabro militar. Na sequência da reunião de Paris (4 de setembro), liderada pelo presidente francês Emmanuel Macron e pelo primeiro-ministro britânico Keir Starmer, essa necessidade tornou-se mais premente devido ao distanciamento de Trump das posições europeias em matéria de garantias de segurança.
Se Zelensky pretendia arrastar os EUA para o confronto militar com a Rússia, então esse objetivo não foi conseguido, pelo menos por agora. Trump não ficou inicialmente convencido: “Pode ter sido um erro”, ripostou o presidente norte-americano, que terá posteriormente alterado o seu entendimento. Por algum motivo, Trump telefonou ao presidente polaco Karol Nawrocki, que se manteve cautelosamente silencioso, argumentando com a ausência de informação, e não ao primeiro-ministro polaco Tusk. Na mesma linha de Trump reagiu o SACEUR, que não achou graça ao empolamento dos acontecimentos feito por Varsóvia. Numa sondagem feita na Polónia, 38% dos inquiridos atribuíram a responsabilidade pelo lançamento dos drones à Ucrânia e apenas 36% à Rússia. A própria população polaca parece não estar muito convencida com a versão ucraniana que o seu governo está a promover.
Zelensky cavalgou a onda e utilizou a oportunidade para pedir mais armas e mais dinheiro e, simultaneamente, exigir que a Europa se envolva mais profundamente no conflito estabelecendo uma zona de interdição aérea a oeste e no centro da Ucrânia, em que a NATO teria a missão de abater aeronaves e misseis russos em território ucraniano. Razão tinha o antigo presidente polaco Andrzej Duda quando reconheceu publicamente que os ucranianos queriam envolver a Polónia numa guerra com a Rússia.
Embora Zelensky não tenha conseguido o que pretendia, é indiscutível que deu um passo significativo nessa direção, dando gás àqueles que de um e do outro lado do Atlântico propagam diariamente o papão da invasão russa, contribuindo para reforçar a posição dos falcões belicistas. Uma ação mais determinada de Washington, como a de Joe Biden aquando da crise dos S-300, mandando calar Zelensky e os polacos, teria evitado alimentar esta expetativa.
Agora que os EUA transferiram para a alçada de Londres o controlo da guerra na Ucrânia, tendo sido criado em Kiev o quartel-general das forças multinacionais da Ucrânia (MNF-U), comandado por um major general britânico, e os britânicos terem assumido a responsabilidade por todas as operações militares de Kiev, tanto dentro da Ucrânia como da Rússia, esta operação muito ao estilo britânico era seguramente do seu conhecimento.
Não deixa de ser bizarra a força que esta narrativa assumiu e o número de aderentes que a abraçaram, sobretudo de quem se exige mais maturidade e experiência, quando não restam dúvidas sobre o que pretende Kiev. Como é possível embarcar-se na tese idiota de que a Rússia iria beneficiar do ataque a um país da NATO e escalar a crise para tirar dividendos políticos?!
Agora, Trump optou por brincar com o fogo. Em vez de condenar veementemente o comportamento de Zelensky e dos europeus eliminando o problema à nascença, como fez o seu antecessor, permitiu a sua continuação: a Roménia (13 de setembro) e a Polónia (15 de setembro) foram alvos de novos ataques. Está para ver quando irão acabar.
O presidente norte-americano optou por tirar partido da situação e chantagear os europeus sugerindo-lhes que deixassem de comprar petróleo russo, passassem a comprar o norte-americano, e aplicassem tarifas de 100% sobre as importações oriundas da China e da Índia, como se esta fosse a resposta adequada à gravidade do momento que se está a viver.
O incidente causado pelos drones russos em território polaco não pode nem deve ser visto isoladamente. Vem na sequência de muitos outros, como a pretensa interferência russa no GPS do avião em que seguia a presidente da Comissão Europeia, numa visita à Bulgária. Não bastava o comentador da Fox Jesse Watters apelar ao “bombardeamento do gasoduto Sibéria 2 [com origem em Yamal, no norte da Rússia, e com destino à China, depois de cruzar a Mongólia] como fizemos [EUA] com o Nordstream,” vem agora o The Nork Times admitir que alguns países europeus não identificados, próximos da Rússia, estão a tomar medidas secretas de retaliação contra a Rússia. Alguns poderão mesmo facilitar ataques ucranianos, como os ataques terroristas a que temos assistido recentemente. Tem havido especulação sobre a origem dos recentes ataques de drones a bases e refinarias russas no extremo norte (Murmansk e S. Petersburgo), suspeitando-se que Ucrânia esteja a utilizar os países bálticos para lançar ataques contra a Rússia.
Aliados com os setores norte-americanos mais belicistas, contra o interesse dos povos que representam, os dirigentes europeus caminham como sonâmbulos para o abismo presos à sua autoilusão, incapazes de perceberem o beco sem saída em que se meteram e para onde nos estão a levar com a obsessão ucraniana. A profundidade do seu envolvimento nesta guerra impede-os de dar uma volta de 180 graus e recuar. Para salvarem a face, preferem fazer uma fuga para a frente, mesmo que isso envolva uma guerra em larga escala.
A possibilidade de uma confrontação na Europa aumenta diariamente, deixando agora de ser apenas retórica. Entretanto, políticos e comentadores néscios continuam a achar que a Europa vai conseguir vencer militarmente a maior potência nuclear do mundo no seu território. Livrem-nos desta gente, que dos russos livramo-nos nós.
Do blogue Estátua de Sal
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