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sexta-feira, 14 de março de 2025

“QUE INGRATIDÃO”!...

JOSÉ CARDOSO PIRES – para mim, de longe, o nosso melhor prosador do século XX -, no seu “DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO” (1ª edição em junho de 1972), conta-nos que «não há muito tempo existiu no Reino do Mexilhão um imperador que na ânsia de purificar as palavras acabou por ficar entrevado com a paralisia da mentira (…) Tendo sido doutor entre os doutores, a sua especialidade eram as palavras. Dormia com elas desde criança e agora que estava sentado a governar começou a magicar um plano para pôr o Reino a falar numa língua limpa e severa em que todos se entendessem. Ou seja, a dos dê-erres.»
«Dito e feito. Mãos ao trabalho, ei-lo a limpar decretos e alíneas, jornais, compêndios – o que calhava (…) Em suma, já que o Reino era pobre o Imperador iria enriquecê-lo com palavras das melhores procedências e criar uma linguagem geral que unisse o jovem ao velho, o rico ao necessitado, o mexilhão ao dê-erre. E boa sorte, desejava-lhe a História (…) A voz escrita e gravada seguia direitinha aos continentes universais através das agências telex e do telégrafo traço-ponto; entrava em órbita, perdurava já distante das leis da terra como um eco… eecooo… Logo pela manhã o Imperador encontrava-a reproduzida nos jornais, e era admirável no fraseado e no subentenda-se, o pensamento a desdobrar-se. A rádio e a televisão transmitiam-na entre marchas invencíveis e compassos de procissão, um-dois, esquerda-direita, Laus Deo»…
Só que «Chave que abre chave, discurso que abre discurso, quando é que aquilo tinha limite? Teve, acabou por dar-se o inevitável: o povo deixou de ouvir o Mestre. QUE INGRATIDÃO!»...
Claro que José Cardoso Pires nesse “conto-fábula-reinação”, como ele denominou o seu “Dinossauro Excelentíssimo”, estava a pensar em SALAZAR. Mas o certo é que, cinquenta e tal anos depois, o retrato aplica-se também e gloriosamente a MARCELO REBELO DE SOUSA. Tão enredado e preso no labirinto do seu próprio palavreado que já NINGUÉM O OUVE (ou lhe liga!)…

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