Caracterização do conflito
Este é o primeiro texto de um ensaio sobre a guerra na Ucrânia com uma reflexão critica e análise integrada – ferramentas do Intelligence- que procura ultrapassar as simplificações maniqueístas e minimizar o efeito das percepções inerente à “guerra de informação” dos conflitos, que alimentam a infobesidade mediática. E que vai além do campo de batalha não sendo possível abraçar o pensamento imposto dos detentores das verdades.
A lógica empregue pelas partes em conflito e a indústria da propaganda dos oráculos de sabedoria são uma perversão da “nobre mentira” como dizia Platão. Enquanto em Moscovo há omissão e desinformação, Washington procura, de forma subtil, influenciar as mentes, através de campanhas que impõem, por vezes, uma realidade apoiada por operações de informação e psicológicas clandestinas. Com efeito, há discursos que padronizam a opinião e disciplinam os alinhamentos sobre a guerra que está a destruir a Ucrânia.
A maior guerra, desde 1945, tem a sua génese no fim da Guerra Fria mal resolvido e resulta de uma longa crise de segurança na Europa, que envolve também a NATO, devido às péssimas opções de política externa dos EUA, à frágil política de defesa da UE e às imponderadas lideranças. Os EUA retiraram em fuga desordenada de Cabul, porque o aparelho militar do Afeganistão era necessário na Ucrânia.
As suas origens mais profundas, em rigor, são anteriores à chegada de Putin ao poder. Um conflito multidimensional com motivações existenciais e ondas de choque a nível internacional, tendo sido destruído um dos pilares do equilíbrio das potências nucleares ancorado no Tratado de Budapeste, violado com a inaceitável cumplicidade das potências que o subscreveram.
Esta guerra é uma aberração perigosa que podia ter sido evitada e representa um caso clássico de guerra por procuração, sendo crucial ter presente que o slogan “injustificada e não provocada” foi utilizado à exaustão como pilar da estratégia de comunicação dos EUA. Uma campanha sustentada em queixas -injustificadas na perspectiva do Ocidente-, que o Kremlin viu como provocação para iniciar a guerra contra a Ucrânia.
Há uma evidente ligação entre a invasão da Ucrânia e as condições do passado que ajudam a explicar a complexidade do conflito. E fazer um exercício racional para perceber as teses relativas às causas, com origem em múltiplas dimensões, que se interligam designadamente histórica, cultural, étnica, linguística, religiosa, geoestratégica, geoeconómica e energética. É inegável que há um invasor e nada justifica a violação do Direito Internacional. No entanto, não podemos ignorar a responsabilidade dos EUA/NATO e UE no conflito.
Para Moscovo a intervenção militar na Ucrânia é um desígnio identitário da defesa da comunidade Russkiy mir de milhões de russos deslocalizados com a implosão da União Soviética, cuja rutura cultural e etnolinguística não foi absorvida nos países do espaço pós-soviético. A complexidade da sociedade ucraniana, com divisões culturais e lealdades políticas fragmentadas, foram exploradas pelos projectos nacionalistas concorrentes.
A reportagem revela a ampla parceria de Kiev com a CIA, que culminou com a instalação de um governo pró-ocidental na Ucrânia e mostra como Washington alimentou os receios de Moscovo. Complementando, a Newsweek detalha as operações clandestinas e abordagem incoerente dos EUA, que associado ao relatório de 2009 esclarecem o nível de manipulação na política interna ucraniana que viola a Carta da ONU.
A guerra evitável revela enormes desafios geopolíticos e fortes pressões sobre a segurança internacional e regional na Eurásia. E expõe a péssima gestão dos EUA/NATO do dilema de segurança relacionado com a instalação do sistema de mísseis balísticos (Aegis) no leste europeu e com a expansão da NATO até às fronteiras de segurança e fronteira de interesses da Rússia. Eisenhower alertou que, sem a retirada dos EUA da Europa, a NATO enfrentaria o risco de fracasso. Além disso, a democratização, vista pelo Ocidente como uma oportunidade geopolítica, é encarada pelo regime russo como uma ameaça direta.
A invasão da Ucrânia revela ainda o fracasso da estratégia de dissuasão ocidental. E a impotência do Ocidente para lidar com o conflito não é por ausência de capacidade militar ou económica. Reside em erros de avaliação estratégica e vários factores interligados: o envolvimento das maires potências nucleares; a fragilidade da defesa europeia; o deficiente diálogo estratégico; as dissensões nas lideranças políticas e a estratégia de comunicação incoerente. A questão difícil, nesta guerra insana, é como travar a escalada e encontrar o caminho da paz duradoura, que não seja a rendição da Ucrânia.
Importa sublinhar, que as regras da ordem liberal têm sido defendidas com hipocrisia e argumentação moral pervertida, consoante os interesses das grandes potências! Na verdade, já tinham sido violadas no ataque da NATO à Jugoslávia, sem mandato da ONU, que revelou não ser uma aliança defensiva assinalando o início do colapso da ordem internacional consumado em 2022. O Ocidente fragilizado deu argumentos à liderança russa.
Pela lente de Moscovo e da Igreja Ortodoxa, a Rússia não faz sentido sem a Ucrânia. Esta dimensão religiosa-ideológica é crucial para avaliarmos as motivações de Moscovo numa guerra que consideram existencial. E há ainda um carácter civilizacional na recuperação da esfera de influência, que visa recuperar o estatuto internacional. Os impérios nunca caem em silêncio e as potências derrotadas desenvolvem o revanchismo.
Na realidade, os documentos estratégicos e discursos de Putin enfatizam a necessidade do estatuto de grande potência, que na sua perspectiva foi humilhada pelo Ocidente. E a tentativa de recriar uma nova Rússia imperial reflecte o ressentimento russo à implosão soviética.
Assistimos, há duas décadas, ao confronto geopolítico pelo domínio da Eurásia por duas vias antagónicas - o atlantismo e o eurasianismo -, através de áreas de influência entre a Rússia e os EUA e pela reemergência da Rússia como potência eurasiática. A aproximação da NATO à Ucrânia e tentativa de negação ao Mar Negro, regiões estratégicas para a Rússia, agravaram os conflitos de interesses, ignorando alertas de reputados cientistas políticos, investigadores e historiadores.
Neste contexto, o confronto reflecte a disputa pelo reordenamento no antigo espaço soviético – a Rússia prossegue e o Ocidente contesta –, desafiando a ordem euro-atlântica estabelecida com o fim da hegemonia soviética sobre a Europa de Leste. O erro histórico residiu em ignorar a Rússia enquanto potência que se quer afirmar e a geografia lhe confere, mantendo a independência estratégica nuclear que limita o poder de Washington com a Europa resignada como palco preferencial das disputas entre as grandes potencias.
A guerra na Ucrânia é uma tragédia evitável que resultou de sucessivos erros de avaliação estratégica e dividiu lideranças dos EUA e europeias, com sério impacto na estabilidade europeia e global. E de sistemáticos bloqueios ao funcionamento da diplomacia. Os inúmeros avisos sobre os riscos da arrogância em relação à Rússia e da expansão da NATO, foram ignorados, tendo Fiona Hill alertado para acção militar russa preventiva.
A intervenção dos EUA e aliados na Ucrânia não pode ser dissociada das acções indirectas, que duram há duas décadas, desde a mudança de regime em Kiev à ajuda militar controlada com restrição gradual do uso do armamento. A forma como tem sido assegurado a ajuda pode ser considerada uma estratégia com táticas de salame. Isto é, um método de alcançar objectivos estratégicos com factos consumados, expandindo a influência através de acções calibradas para punir, mas evitar uma escalada maior.
As indecisões e debates com retórica incoerente, a falta de coesão entre aliados -em tempos tão apregoada- e a fragmentação política estão na origem da ausência de uma estratégia única da coligação internacional para a ajuda militar à Ucrânia, que enfraqueceu a eficácia. Isto acontece entre outros factores, porque há percepções divergentes sobre a ameaça em relação à Rússia e se a Ucrânia pode prevalecer.
Em síntese, o conflito é definidor das relações entre todos os actores do espaço euro-atlântico, numa nova (des) ordem mundial entre blocos assimétricos, constituindo o mais importante desafio estratégico das últimas décadas, cuja resposta só poderá ser político-diplomática.
*Capitão-de-Fragata (R)
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