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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Reflexão sobre a Guerra na Ucrânia (2):

A encruzilhada e os dilemas

O mundo está numa grave encruzilhada com o confronto geopolítico entre a Rússia e o Ocidente, utilizando a Ucrânia como palco da disputa de interesses, geoestratégicos, geoeconómicos e energéticos. Uma longa guerra impossível de vencer, ligada à conflitualidade disruptiva do Médio Oriente, onde se projeta as novas dinâmicas de poder de múltiplos atores globais. 

Por sua vez, a Ucrânia também tem estado numa encruzilhada multicultural, dividida entre a Europa e os laços históricos, culturais, económicos e até políticos com a Rússia. Os ucranianos veem seu futuro na UE, apesar do país ainda não cumprir os critérios de adesão. O conflito é também visto como parte da rivalidade geopolítica das grandes potências em perigosa deriva de soluções condenadas pela história.

O maior país com território exclusivamente europeu e importantes recursos naturais é um dos “estados-tampão” do espaço de influência geopolítica da Rússia, que a doutrina Primakov considera vital na fronteira de interesses para a sua segurança nacional. E é um pivô geoestratégico para os EUA pela localização do Mar Negro entre a Europa e a Ásia, no âmbito da negação da frota russa ao Mediterrâneo. 

Brzezinski incentivava os EUA a dominarem a Eurásia com base na teoria do Heartland de Mackinder, mantendo a Ucrânia longe da Rússia. E foi profético em relação à crise na Ucrânia. Na linguagem geopolítica esses estados, entre duas potências, devem manter a neutralidade para garantir o equilíbrio estratégico. 

Contudo, os conceitos de fronteiras de segurança e fronteiras de interesses foram desvalorizados numa depreciação cínica das preocupações securitárias russas. Preocupações seletivas como se constata em outras geografias. A este propósito, Angela Stent que é muito critica de Putin, sublinha serem tão legítimos os interesses da Rússia quanto os do Ocidente e tem direito a uma esfera de interesses privilegiados. Aliás, como os EUA, cuja doutrina Monroe ainda não foi revogada como se viu com as intensões expansionistas de Trump.

Convém sinalizar, que o cientista político Mearsheimer foi apoucado pelos falsos moralistas, quando analisou as causas que levaram Putin – subestimado pelos EUA e UE -a desencadear uma guerra preventiva para manter a Ucrânia afastada da esfera de influência do Ocidente, tendo em conta as preocupações securitárias. 

A sucessão de erros de avaliação estratégica, refletiu-se na rejeição da abordagem racional dos EUA/NATO na gestão do dilema de segurança relativo à deficiente percepção das ameaças, do risco e paradoxos de segurança com falência do instrumento político-diplomático. Houve, de facto, avanço contínuo da NATO, apesar de garantias em contrário, como revelam documentos desclassificados “cascata de garantias”. O insuspeito Kennan, alertava que o erro fatídico da expansão da NATO para Leste conduzia à agressão da Rússia.

A política hostil em relação à Rússia não só a tornou inimiga dos EUA e aliados, mas também a levou para os braços da China com novos alinhamentos geopolíticos a desafiar a atual ordem mundial. Henry Kissinger dizia que diabolizar Putin e a Rússia revelava o fracasso da estratégia ocidental, tendo também alertado que os EUA deviam evitar a aliança entre a Rússia e a China. E o mesmo Kennan, referia, que a Rússia devia ser contida, sem ser excluída, como acabou por acontecer em relação à segurança europeia.

A deriva da Ucrânia para o Ocidente remonta às "revoluções coloridas". A UE atraiu a Ucrânia para a sua esfera de influência através de um acordo de associação, em 2007, depois do regime ucraniano ter considerado a adesão à União Económica Eurasiática, promovida pela Rússia. Além disso, a Ucrânia recebeu um convite para integrar a NATO na Cimeira de Bucareste em 2008, tendo sido iniciado muito antes um Plano de Acção (2002), sem à data a Ucrânia abdicar da neutralidade, prevista na Declaração de soberania (1990) e na Constituição. Esta situação provocou profundas divergências na UE com forte impacto das relações entre a Rússia e Ucrânia.

Aquela condição imposta à Ucrânia para aderir à NATO impunha denunciar o Acordo de Kharkiv, entre a Ucrânia e a Rússia (2010) ratificado pelos Parlamentos. Esse Acordo vinha no seguimento do Tratado da frota do Mar Negro assinado em 1997 entre Rússia e Ucrânia. Afinal quem violou o Direito Internacional?

Na opinião pública por desconhecimento ou incúria não são debatidos os factos ocorridos antes da anexação da Crimeia e as motivações relacionadas com a guerra civil no Donbass, que também estão na origem do conflito. A liderança russa nunca aceitou a mudança de regime e um governo hostil em Kiev, que impusesse a retirada da sua frota de Sebastopol e, consequentemente, do acesso ao Mar Negro e ao Mediterrâneo. 

Nas manifestações do Euromaidan promovidas com o apoio dos EUA e UE, estiveram muito activos o senador John McCain, o embaixador Geoffrey Pyatt e a subsecretária de Estado Vitoria Nuland. Os protestos geraram manifestações violentas, cuja investigação Ivan Katchanovski prova o envolvimento directo da extrema-direita ucraniana, que conduziu a um golpe de estado derrubando o presidente Viktor Yanukovych por ser pró-russo. Porém, os observadores (OSCE) atestaram a eleição justa e sem fraude e demonstração de democracia.

Convém dar nota, que as diferentes narrativas do massacre de Maidan e da mudança de regime na Ucrânia alimentaram a “agenda própria dos EUA contra a Rússia”, assumida pelo ex-director da CIA Leon Panetta. E complicaram a resolução pacífica dos conflitos na Crimeia, da guerra civil no Donbas. 

Entre as diversas fases dos conflito importa destacar o período conturbado da presidência de Zelensky, entre 2019 e 2021, com aumento das tensões com Moscovo, provocado pelos seguintes factos: não cumpriu a promessa de renegociar os Acordos de Minsk por pressão da ala militar com ligações à extrema-direita; ilegalizou partidos de esquerda. E promulgou decretos polémicos: supressão da língua russa e drones para atacar o Donbass. A UE manteve o silêncio cúmplice perante os atropelos à democracia e as purgas em Kiev.

É, pois, legitimo concluir que a complexa combinação de factores e manifesta incapacidade das lideranças ocidentais em lidarem com a Rússia como é, e não como gostariam que fosse, conduziu à encruzilhada em que se encontra a Ucrânia e a Europa. Isto aconteceu, porque a Europa tem sido a extensão do domínio dos EUA assente na sua política externa com base na doutrina da primazia global do excepcionalismo, que influenciou o quadro mental dos presidentes americanos desde a Guerra Fria. 

Biden é acusado de transformar o conflito na Ucrânia numa guerra de procuração, que pode “escalar para um conflito nuclear” ou guerra mundial, usando os ucranianos para enfraquecer e derrotar a Rússia. A fantasia dos que têm alimentado falsas expectativas à Ucrânia, que foi enganada ao abdicar do seu arsenal nuclear, pelos mesmos que a incentivaram a continuar a guerra com “as long as it takes. Zelensky corre contra o tempo que o tempo não tem, favorável a Putin que continua a explorar as fragilidades e desafiar o Ocidente.

A situação para a Ucrânia é terrível ao nível político-diplomático, estratégico e operacional, tendo perdido seis vezes mais território que em 2023. As suas forças armadas estão exauridas com uma nítida fadiga de guerra e até indiferença e falta de coesão dos governos ocidentais. O actual impasse pode conduzir a negociações ou ainda evoluir para o dilema estratégico de uma guerra existencial impossível de vencer entre os EUA que querem o fim da guerra, a Ucrânia apoiada pela Europa não aceita a derrota e a Rússia que não pode perder. 

Isto é, a Europa tem de pagar um preço muito elevado à Rússia pela invasão, mas sem a encurralar num perigoso beco sem saída, que o leve Putin à escalada. Talvez, por isso, alguns líderes europeus refiram que o conflito está a assumir proporções dramáticas e que se aproxima o desconhecido. O imprevisto espreita!

Em síntese, a tragédia ucraniana é o resultado da intensa disputa geopolítica entre a Rússia e o Ocidente. E traduz a forma negligente e ostensiva como os beligerantes e as coligações que os apoiam encaram as dimensões política, doutrinária, estratégica, informacional, legal e ética.

José Manuel Neto Simões 

Capitão-de-Fragata (R)

No DN

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