«Toda a investigação, e os acórdãos, baseia-se neste princípio: ele é culpado, agora vamos descobrir como.»
[...]
«Nós temos o direito de saber se tivemos um primeiro-ministro que foi corrupto, ou se, pelo contrário, tivemos um Ministério Público que perseguiu politicamente um primeiro-ministro.»
[...]
«Se alguém é inocente, e faz tudo para não ir a julgamento, é porque não é inocente.»
Ninguém pode acusar MST de não dizer o que pensa ou de andar nisto do comentário para concorrer a cargos políticos ou favorecer amigos políticos. Tal característica confere-lhe uma autoridade reforçada quando pratica jornalismo. E foi jornalismo o que serviu neste artigo — É um trabalho chato, mas tem de ser feito — onde desafiou tudo e todos a provarem que fizeram o mesmo que ele: ter lido as 4083 páginas da acusação do Ministério Público, as 6728 páginas da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa e as 683 páginas do acórdão da Relação sobre o recurso do MP dessa decisão, com o propósito de estar em condições para opinar sobre a Operação Marquês com base nos factos apurados pelas autoridades e nos argumentos judiciais a que deram origem. Conclusão a que chegou: não há lá nada que seja prova de corrupção. Nada.
Quem quiser ser intelectualmente honesto sobre Sócrates tem de fazer o mesmo. Por isso, exactamente por isso, nenhuma das vedetas da indústria da calúnia se vangloria de façanha igual. Por duas evidentes razões: porque têm alergia à honestidade intelectual, incompatível com a fonte dos seus rendimentos, e porque têm medo de ter de reconhecer, sem margem para dúvidas, que a Operação Marquês é um processo essencialmente político, ainda que tenha nascido de indícios que justificavam a abertura de investigações e tenha apanhado indeléveis ilegalidades fiscais. Mas que dizer dos restantes comentadores e jornalistas que não enchem o bolso a servir calúnias ao gosto dos seus patrões mediáticos? Qualquer um deles poderia ter lido o que MST leu “com atenção e espírito isento“. Se o fizeram, não temos notícia disso. Existe não só uma permanente campanha de culpabilização de Sócrates em toda a comunicação social, a qual começou logo em 2004, como a dimensão moral do caso gerou um quase unânime ostracismo que funciona como mais um factor de ataque aos seus direitos.
O que faz da Operação Marquês o processo judicial mais importante do período democrático, e, do ponto de vista dos pressupostos sistémicos, um dos mais importantes da História de Portugal, está condensado nesta dicotomia, a qual também eu logo nos dias e semanas após a prisão de Sócrates formulei neste pardieiro: ou se prova a corrupção de um primeiro-ministro, e isso tem de arrastar os governantes e dirigentes partidários socialistas à época numa qualquer cumplicidade e/ou responsabilização, ou se prova que o processo nasce e é conduzido com motivação política, e isso equivale a termos criminosos a conduzir a Justiça. Não há terceira opção, nem meio-termo. Ora, qualquer uma dessas possibilidades não só é tremenda (para a própria legitimidade e autoridade das instituições da República), não só é catastrófica (pois quem estava ao lado de Sócrates continuou na vida pública e política, o seu partido voltou a governar, e não se concebe o que fazer a um MP tomado politicamente), como é realmente impossível aceitar as consequências lógicas de qualquer delas. A única eventual escapatória, aquela que foi de imediato dada como fatal, não apareceu: o retrato de um primeiro-ministro corrupto, sabendo-se por quem e para quê, e tendo tratado da coisa sozinho, com poderes mágicos. Apesar disso, a sua condenação por corrupção continua a ser possível, pois é possível aos tribunais inventarem legalmente crimes. Como aconteceu com Armando Vara.
Há um pacto secreto, calado, invisível na sociedade portuguesa para que Sócrates seja sacrificado como o mal menor, apesar de, com a mais elevada probabilidade face ao que foi apurado, não ter sido corrompido e o dinheiro de Carlos Santos Silva ter vindo apenas dos seus negócios, sejam estes lícitos ou ilícitos. A sistemática campanha para o destituir da presunção de inocência, para assassinar o seu carácter, para que seja odiado por broncos, fanáticos e qualquer um que consuma espaços noticiosos, de comentário e de debate, tem um objectivo estratégico: tornar política e socialmente aceitável o seu julgamento de excepção e a sua condenação em tribunal como castigo moral. É preciso que seja visto como um monstro para que os algozes o possam tratar monstruosamente no patíbulo, sob o êxtase da turbamulta.
Alguém inocente quer ir a julgamento? Esta falácia vir de MST causa vergonha alheia. Ele, se quisesse, poderia tranquilamente apresentar mil razões para um inocente, na situação de Sócrates, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para não pôr os pés num tribunal. Por óbvias razões, do profundo e dilacerante sofrimento que tal experiência inevitavelmente provoca, passando pelos enormes gastos financeiros com a defesa que se somam aos já feitos ao longo de anos, e chegando à real possibilidade de se ser condenado apenas por razões corporativas e/ou políticas — incluindo a possibilidade de não ser condenado por corrupção mas a sentença sobre outras eventuais ilegalidades constituir-se como uma pseudo-condenação por corrupção se os juízes deixarem escrito que têm essa convicção mas não os meios legais para a provar. Por exemplo, Ivo Rosa fez isso, maculando o seu magnífico trabalho de desmontagem exaustiva e implacável das mentiras do MP.
Não faço ideia se Sócrates é inocente ou culpado de corrupção. Sei que a tese de os inocentes provarem a sua inocência apenas se correrem alegremente para os tribunais corresponde a uma grotesca corrupção dos princípios basilares do Estado de direito democrático.
14 Dezembro 2024 às 9:23 por Valupi
Do blogue Aspirina B
Sem comentários:
Enviar um comentário