Curiosos e perigosos tempos em que estar ‘acordado’ (woke), com os olhos levantados do cotão do umbigo, sentir empatia pelas pessoas e comunidades mais desfavorecidas e discriminadas, e desejar que os direitos humanos cheguem a todos e todas de forma igual é considerado por cada vez mais gente — incluindo muitos comentadores de televisão e jornais — como radical, ameaçador, desnecessário, acessório ou moda.
Como chegámos a isto? Direitos humanos são a base das sociedades democráticas, com valores que nos salvam de caminhos alarves, cruéis e imorais.
Direitos humanos são a essência do futuro que queremos para nós e para os nossos filhos. Em que mundo queremos viver, afinal?
Curiosos e perigosos tempos em que há um grande número de supostos moderados que se radicalizaram, que se aproximam de alguns discursos da direita extrema, com fúria pelo que chamam de ‘politicamente correto’, com uma raiva a crescer-lhes nos dentes, por não poderem insultar, ignorar e discriminar à vontade as minorias do costume sem serem chamados publicamente à razão ao praticarem micro agressões ou cancelamentos invisíveis.
Curiosos e perigosos tempos em que há cada vez mais vozes, ditas esclarecidas e moderadas, muitas de esquerda, que afirmam que entre Kamala e Trump não há grandes diferenças e não importa quem ganhou.
Porque Kamala dizia coisas só para agradar e Trump dizia coisas só da boca para fora. Numa lógica de tudo igual a tudo, sem linhas vermelhas. Como antes hesitava uma certa direita em escolher Lula ou Bolsonaro, normalizando e desvalorizando os discursos de ódio, atentados à democracia e assumidas políticas de desigualdade social. Um pensamento cínico, manipulador e desonesto.
Quanto a isto aconselho que ouçam o último episódio do podcast “Expresso da Meia Noite” em que Rui Tavares chega a afirmar: “Líderes autoritários como Trump quando regressam ao poder voltam sempre mais revanchistas.”
Curiosos e perigosos tempos em que a maior democracia do mundo elegeu pela primeira vez um candidato condenado por crimes para Presidente, um ‘bully’ autoritário, narcisista patológico, manifestamente misógino, com um sem fim de mulheres a acusarem-no de abuso sexual, que orquestrou a invasão do Capitólio, e escolheu a mentira, o delírio, e o discurso de ódio para estigmatizar comunidades e polarizar o país.
Terão sido os homens brancos, latinos e com menos escolaridade quem mais contribuiu para abrir de novo a Trump a porta da Casa Branca.
Como escreveu o filósofo brasileiro Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
E, por isso, machos brancos, latinos e negros votaram massivamente em Trump, e os imigrantes legalizados colocaram a cruz na deportação massiva de outros. O mundo por vezes avança em marcha-atrás.
A VERDADE NÃO DÁ VOTOS
Curiosos e perigosos tempos em que os factos e a verdade não valem um tostão furado. E fazem perder eleições.
Em que cada um fabrica ou dissemina ‘a sua verdade’ por mais fantasiosa e ficcionada que seja. Em que o jornalismo é cada vez mais desconsiderado e esvaziado (com cada vez mais grupos de comunicação social em risco de fecharem as portas) e se consome com gula, vício e sem critério ou literacia fake news, vulgo tretas, no tik tok ou no X.
Um estudo provou que Elon Musk impulsionou o algoritmo do X com notícias favoráveis a Trump ao mesmo tempo que espalhava milhares mentiras que cavalgaram o algoritmo para atingirem mortalmente a campanha de Kamala.
Esta é a era das crenças e do que cada um quiser acreditar. O melhor cenário para surgirem os falsos messias. E os grandes tiranos.
A DOENÇA DA DESUMANIZAÇÃO DOS OUTROS
A desumanização, egoísmo e indecência passou a ser o novo normal, o novo mundo, e o monstro adormecido em nós passou a estar à solta, descarado, sem vergonha. Uma doença a alastrar no mundo e também para os nossos lados cada vez mais em força.
Por cá o Expresso apurou que as operações ‘musculadas’ subiram 700% nos últimos dez anos nos bairros de Lisboa, nas consideradas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), mas os critérios para todas estas ações e os bairros que abrangem estão ainda por revelar.
Por outro lado, esta semana arrancou uma megaoperação policial na zona do Martim Moniz, em Lisboa.
A deportação massiva de imigrantes no futuro Governo de Trump começa a virar moda cá no burgo?
Ainda sobre a eleição que fez boa parte da Europa, e do mundo, tremer:
O New York Times questiona se alguma vez uma mulher será Presidente dos EUA. A avaliar pelos resultados de Hillary Clinton e Kamala Harris, não. Ou não deveremos estar vivos para assistir a esse momento histórico.
Porque apesar das múltiplas outras razões e explicações que poderão ter desviado votos destas duas candidatas, o factor género, e num dos casos ser mulher e negra, não é mero detalhe.
PORTUGAL, DE QUE É QUE TU ESTÁS À ESPERA?
Faço a mesma pergunta para estas bandas: alguma vez o nosso país estará preparado para eleger uma mulher para Presidente - ou mesmo para 1ª ministra?
Faz sentido que 50 anos depois do 25 de abril ainda nenhuma mulher eleita tenha ocupado um lugar de liderança do Governo e do país? (Maria de Lourdes Pintasilgo foi primeira-ministra em 1979, mas não por eleição)
Como afirmou a deputada do PS Edite Estrela, numa conversa que tivemos em podcast: "É altura de as mulheres desempenharem os altos cargos da nação. As mulheres servem para trabalhar, mas também para decidir."
Vou mais longe: é também altura de, em Portugal, as pessoas racializadas ou LGBTQIA+ passarem a disputar também os mais altos cargos da nossa nação. Haverá certamente muitas pessoas intelectualmente brilhantes, com olhar político e capacidade para tal.
E que se vote na melhor pessoa, na equipa mais bem preparada, no projeto político mais robusto e não apenas no rosto mais mediático ou superpop, cultivado tantas vezes durante anos em espaços de opinião televisiva — lugares por sua vez muito pouco diversos. Mas isso é outra conversa…
Ganhamos todos com mais diversidade na elite que governa o país. Verdade? Ah, espera, que isto talvez seja muito ‘woke’...
por Bernardo Mendonça (Expresso,09/11/2024):
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