Na cozinha da casa dos meus pais existiam umas caixas de lata com rótulos Arroz, Massa, Açúcar, Café… O que se encontrava no interior nunca correspondia ao rótulo. A lata que anunciava café de umas vezes tinha biscoitos, de outras nozes, a do açúcar podia ter massa ou farinha, havia uma que habitualmente servia de mealheiro e guardava moedas. Habituei-me a não confiar nos rótulos. Também passei mais de dois terços da minha vida a comer em refeitórios de instituições. Sou um consumidor de rancho geral, não espero maravilhas gastronómicas, mas procuro saber o que os cozinheiros lá colocam para evitar diarreias.
Com estas habilitações, fruto das circunstâncias, tendo a apreciar a “nobre arte da política” como um cozinhado de rancho geral elaborado com os produtos das latas que se encontram na dispensa. Hoje a política é um rancho geral produzido com uma receita de politicamente correto. As recentes eleições em Inglaterra e em França e as sondagens sobre as intenções de voto na Alemanha fornecem pistas para os clientes-consumidores que nós somos entenderem o que lhes estão a colocar no prato. O que devemos comer e o que devem rejeitar para não ficarmos doentes. Pelo menos isso: haja saúde!
Na Europa estão em hasta pública dois produtos políticos. O dos situacionistas e o dos anti situacionistas. As grandes máquinas promocionais, aquelas que nos convencem que uma bebida xaropada, escura como um esgoto, que desentope canos e desoxida moedas é a melhor bebida do mundo, impuseram o bom e o mau para a nossa saúde. As fontes produtoras de opinião etiquetaram os primeiros de moderados e os segundos de radicais. Mas a caixa com o rótulo moderados contem mesmo moderados? E a do rótulo: radicais, extremistas e outros que tais, conterá de facto ingredientes alternativos? A França é um bom tubo de ensaio para análise, mas os reagentes são os mesmos do Reino Unido e da Alemanha.
Qual é o produto político que os situacionistas propõem em França e cuja vitória saúdam como se os sans culottes tivessem tomado de novo a Bastilha (uma história muito adulterada)?
O situacionismo em França tem como ponto de partida o fim do mandato de Jacques Chirac e com ele o conceito gaulista de uma política autónoma da França e da Europa, de uma Europa com um núcleo formado pelo antigo império de Carlos Magno, a França, a Alemanha e o Norte de Itália (a lotaríngia). Chirac foi substituído por Sarkozy e este por Hollande e este por Macron. Este trio de PP ( petits presidents) corresponde em Portugal a Durão Barroso, Passos Coelho e Paulo Portas, em Espanha a Aznar e a Zapatero, em Inglaterra a Blair, Gordon Brown, Cameron, Theresa May, Boris Johnson.
Em termos de latas de cozinha temos uma prateleira de produtos que metidos em panela e deixando a cozer em lume brando produz uma papa que é o neoliberalismo. Uma ranchada que ilude a fome a curto prazo, mas mata a médio, porque lhe foram retirados, em nome do lucro, os elementos essenciais de vitaminas e proteínas.
Com que produtos se cozinha o “Ensemble” de Macron que ficou em segundo lugar nas eleições francesas e que tem sido celebrado pela caldeirada reunida sob o ressuscitado lema de “Nova Frente Popular”, que nem é nova, nem é uma frente, menos ainda é popular como a salvação da democracia tricolor da Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Uff! Titulou o progressista moderado Liberation. Mas uff a propósito de quê? Os franceses vão ressuscitar o sistema europeu Galileo de geolocalização para substituir o GPS americano? Vão impor uma administração europeia para o BCE, que faça do euro uma moeda de troca universal e ao serviço de uma política europeia?
E o que se encontra na caixa da Nova Frente Popular? O sereno desespero dos coletes amarelos que colocaram a França a ferro e fogo para depois permanecer tudo na mesma? Com a atual política da França (e da Europa) de crispação contra meio mundo: Rússia, China, Índia, África e até a América latina a quem vai a França da Nova Frente Popular vender produtos de luxo? Se a NFP mantiver a politica de Macron, dita moderada, de guerra aos BRICS, passará a submissa sem nunca ter sido insubmissa. Mélenchon e os seus aliados ficam com as malas, os perfume, os vinhos à porta dos clientes. Mas se quiser ser a França Insubmissa, os Estados Unidos tiram-lhe o tapete, passam-lhes uma rasteira, como fizeram no negócio dos submarinos para a Austrália (que vai entrar para a NATO, com a Nova Zelândia e com o apoio da França!) A NFP de Jean-Luc Mélenchon tem boas hipóteses de ficar isolada entre Putin, Xi Jiping e Trump. Deve ter sido essa possibilidade de quadratura do circulo, de comer o bolo e ficar com o bolo, que celebraram ontem! Dentro de dias saberemos novas dos extremistas moderados que salvaram a República!
Um dos maiores sucessos da propaganda política é ter conseguido “vender” o neoliberalismo como um produto saudável, moderado, equilibrado depois da sua apresentação pública como religião de salvação no golpe de Pinochet no Chile em 1973. O “Ensemble” de Macron é uma mixórdia neoliberal metida numa embalagem que tem sido impingida como sendo genuinamente democrata e que, como os meios de propaganda nos matraquearam ontem, contribuiu para a derrota do que os taxionomistas políticos classificaram como extrema-direita, que passou de Frente Nacional a União (Rassemblement) Nacional e da direção de Marine Le Pen para um seu meio genro (casado com uma sobrinha), Jordan Bardela.
A lata dos produtos que compõem o “Ensemble” são conhecidos desde que a escola de economistas de Chicago patrocinada por Milton Friedman os utilizou para cozinhar a ditadura de Pinochet, no Chile: um deus — o mercado; um princípio - homem é o lobo do homem — sobrevivem os mais aptos, sucesso é estar acima dos outros. Um programa de vida: que cada ser humano viva e morra segundo as suas possibilidades. Obediência aos Trés Mandamentos de Margareth Tatcher: não há sociedade, há indivíduos; não há cidadãos, há consumidores, não há eleitos, há predadores de votos. Um sacrário: a Reserva Federal dos Estados Unidos.
As eleições no Reino Unido e em França revelam o beco sem saída do situacionismo e a alienação que os meios de comunicação conseguiram ao colocar as massas de futuros desempregados, de futuros SDF, os sem abrigo na sigla francesa e em homenagem aos franceses tão aparentemente felizes por manterem Macron no Eliseu, Mélenchon na animação popular e Marine Le Pen a esperar por ele para as próximas eleições presidenciais, onde lhe perguntará o que o distingue de Macron quanto ao euro, quanto à relação com o BCE, quanto à relação com os Estados Unidos, a Rússia, a China e a África, o que o distingue de Macron quanto à caótica política ambiental, quanto às fontes de abastecimento de energia, quanto à política aeroespacial da Europa, quanto às guerras com que os Estados Unidos cercaram a Europa desde os anos 80 do século passado — Irão, Iraque, Afeganistão, Jugoslávia, Síria, Palestina, Líbano, Líbia, produtoras das vagas de migrantes.
As eleições na Alemanha produzirão com elevada probabilidade o mesmo tipo de vitória dos situacionistas com mais ou menos sociais democratas ou conservadores no grande bolo. O situacionismo europeu, o grande grupo dos democratas moderados, que inclui conservadores e sociais democratas, constitui a religião oficial na Europa. O situacionismo teve a arte e os meios financeiros para vender o seu extremismo (são os defensores de que eles representam o Fim da História) como um produto de moderação e que todos os que lhes expõem os punhais que trazem escondido são extremistas. Extremistas são os outros.
O extremismo que se esconde na lata com o rótulo de moderados, juntos, unidos, conservadores, nas também democratas cristãos, trabalhistas e socialistas está no poder. É o poder e há largos anos! Em Inglaterra Boris Johnson não era mais nem menos moderado, ou extremista que Toni Blair! Ursula Von Der Leyen não é mais ou menos extremista ou, à francesa va-t-en guerre contra a Rússia e a China, que Macron desde que Putin o colocou na ponta da quilométrica mesa do Kremlin. A warmonger Kellie Kallas a estoniana que vai entrar de representante da política externa da União Europeia é mais moderada ou extremista que Marine Le Pen? Em quê? E a madame Lagarde do BCE é uma moderada que ajuda pobres e remediados a pagar os juros exorbitantes aos bancos para terem um teto? E o trabalhista Keir Starmer recém eleito primeiro ministro do Reino Unido tem uma politica mais moderada para deportar migrantes para o Uganda ou os deixar afogar no Canal da Mancha dos seus moderados antecessores conservadores? E o que distingue as políticas migratórias do Reino Unido, dos Países Baixos, da Alemanha (que é a maior financiadora dos campos de concentração de migrantes na Turquia) das de Marine Le Pen, ou da primeira ministra italiana?
Falecido em 2019, após uma vida bem gozada, Jacques Chirac foi o último gaulista no poder. Com a sua morte morreu qualquer laivo de desalinhamento da Europa e da França com a política de domínio económico, financeiro e militar por parte dos Estados Unidos. Sendo assim, o que estão a celebrar os situacionistas europeus e os franceses em particular e, mais aberrante ainda, os que se afirmam gaulistas? O que defendem aqueles que o pensamento dominante classifica como extremistas e colocou numa lata com um autocolante: Perigo!
Se o perigo para a Europa é, em primeiro lugar, o do alastramento e subida de patamar das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente. Se, em segundo lugar o perigo é a da conjugação de inflação e depressão económica na Europa (a França dos moderados vitoriosos já está na categoria penalizadora de défice excessivo); e se, em terceiro lugar, o perigo para a Europa é o da irrelevância política e económica, transformada como está um mero apêndice dos Estados Unidos foram os extremistas que trouxeram a Europa até aqui. E estão a celebrar a vitória. Celebram o quê?
Carlos Matos Gomes
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