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sexta-feira, 28 de junho de 2024

"Não aceitem políticas feitas a partir de perceções. E aceitem um adeus":

"Em fevereiro deste ano, em plena campanha eleitoral, Pedro Passos Coelho falava da perceção de insegurança, sentida por muitos portugueses, e da sua relação com o aumento da imigração. Foi fácil desmontar essa narrativa por não existirem indícios factuais que apontem para uma relação entre o número de imigrantes que entra no país e o número de crimes praticado.

Reparem que em vez de apresentar dados, Passos Coelho optou por valorizar aquilo que defende ser a perceção de muitos portugueses. Ora, se essa perceção existir (ou existisse), deve, sim, ser corrigida por quem tem responsabilidades públicas e políticas. Nunca poderia ser invocada para legitimar propostas políticas.
Ontem, numa entrevista ao Observador, Rita Alarcão Júdice, ministra da Justiça, voltou a falar em perceções. Foi a propósito de o Ministério Público (MP) estar debaixo de fogo há alguns meses. Rita Alarcão Júdice referiu que “o olhar do cidadão é muito importante para o Governo. E hoje em dia o cidadão comum não compreende muitos aspetos da atividade do MP”. Mas não fez quaisquer críticas ao funcionamento do MP e também não identificou problemas concretos que careçam de soluções. A sua grande preocupação transparece várias vezes nas suas afirmações: “O ponto é: todos concordamos que é preciso que algo mude no MP no sentido da perceção da credibilidade dessa magistratura, porque está muito vulnerável a algumas críticas.”
Há de facto um enredo de problemas à volta do MP, mas, de entre eles, eleger a perceção que os portugueses têm do seu funcionamento merece reflexão.
Vamos por partes: ao contrário do que sucedeu com as declarações de Pedro Passos Coelho, Rita Alarcão Júdice tem boas razões para falar da perceção que os portugueses têm do funcionamento do MP. Por um lado, porque parece existir uma relação entre a atuação do MP e a sua falta de credibilidade e, por outro lado, porque é evidente que essa perspectiva agrava-se à medida que os casos se sucedem. Isto notou-se especialmente na última divulgação de escutas que envolviam António Costa.
Mas será a perceção que os portugueses têm do MP o aspeto fundamental que o poder político deve considerar quando se fala em resolver o problema do MP?
Terão presente o “Manifesto dos 50”. Caso não tenham, recomendo a leitura. Traça um bom diagnóstico dos problemas da Justiça e aponta soluções concretas. Também alude a perceções, mas para alertar para a formatação da opinião pública – decorrente da atuação do MP – no sentido de criar a ideia de que todos os políticos são iguais e corruptos, o que abre as portas ao populismo. Nem de perto nem de longe coloca a perceção que os portugueses têm da atuação do MP no centro do problema.
Isto não é de menor importância. Governar com o intuito de melhorar a perceção que as pessoas têm dos problemas é conflituante com resolver as causas dos problemas. Isto porque, como aponta John N. Gray, escritor e filósofo, a maior dificuldade do homem não é pensar corretamente. O mais difícil é precisamente fazer um ser humano ver as coisas tal como elas são. Nisto, Gray está de acordo com o também filósofo e escritor Slavoj Zizek – e se é difícil encontrar um ponto de entendimento entre ambos – que considera que “a própria forma pela qual percebemos um problema é um obstáculo para a sua solução.”
Quando a ação política anda a toque de caixa das perceções está condenada ao fracasso e começa a confundir-se com comunicação e propaganda. O Governo deve estar atento às perceções dos portugueses, mas não pode cair no erro de as considerar rigorosas ou de as usar como referência para identificar problemas e soluções. Sobretudo não pode reduzir problemas complexos, como o que atravessamos com a Justiça e com o MP, ao que é apreendido pelo “olhar do cidadão.” Para trabalhar perceções temos as agências de comunicação. Nada contra o trabalho que desenvolvem, mas triste será o dia em que a agenda política siga a mesma lógica.
(Há mais de dois anos que vos escrevo nesta última página. Hoje faço-o pela última vez. Na maioria das vezes foi um prazer enorme escrever estas crónicas. Invocando novamente John N. Gray, digo-vos que o que se escreve tem consequências, mas raramente são as que os autores esperam ou desejam, e nunca apenas estas. Não fiquem com a perceção de que isto é um lamento. Pelo contrário, vejam como a genuína rendição à lei da ironia. Agradeço a todos as leituras e os comentários, mesmo os maus, e a este jornal agradeço a extraordinária oportunidade.)"
Carmo Afonso

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