O relatório do capitão Maltez, que comandou a 1.ª divisão da PSP que a 29 de Março de 1974 vigiou o espetáculo organizado pela Casa de Imprensa no Coliseu dos Recreios de Lisboa onde se apresentaram vários cantores de protesto contra a ditadura – num momento marcante de oposição ao regime ocorrido mesmo antes do golpe, a 25 de Abril, que o derrubaria – relata um incidente ocorrido quando foram distribuídos os prémios que a organização atribuíra e que era um dos momentos simbólicos deste I Encontro da Canção Portuguesa.
No documento, enviado à PIDE/DGS, a polícia política do regime, e ao Comando Geral da PSP, e que é reproduzido no livro Canto de Intervenção de Eduardo M. Raposo, o capitão Maltez escreveu o seguinte:
“Quando da distribuição dos prémios de Imprensa, o da Rádio foi atribuído ao locutor Adelino Gomes face às suas reportagens radiofónicas; o apresentador esclareceu que apesar disso Adelino Gomes estava desempregado da rádio e que queria dizer umas palavras. Disse então Adelino Gomes: ‘Tive o prémio de melhor locutor da rádio, mas fui despedido por ter dito algumas coisas e por pretender dizer muitas coisas que vocês deviam saber’. Disse ainda: ‘Fiquei muito sensibilizado com um telegrama que recebi há pouco de um colega que também foi despedido e se encontra na Alemanha – João Paulo Guerra’.
Perante tais palavras a assistência, durante quase um minuto, gritou ‘fascistas, fascistas’ ... Contudo, para arrefecer os ânimos, seguiu-se logo o intervalo”.
Como é evidente, ter uma multidão de cinco mil pessoas, entusiasmada, a chamar fascistas às autoridades da época, num tempo em que imperava o medo da repressão policial e a proibição de manifestações políticas era a norma, foi algo excecional, grave e perturbador – mas, apesar de ser impossível de esconder o facto pois certamente essas cinco mil pessoas contaram depois, a quem podiam, esse momento de protesto, não se podia publicar nos jornais que tal coisa tinha realmente acontecido.
No Diário de Lisboa do dia seguinte o incidente não é relatado, provavelmente por causa da censura, mas reproduz-se a significativa declaração do júri que deu o prémio a Adelino Gomes, que dizia que ele era atribuído “pelas inegáveis qualidades que, como repórter radiofónico, desenvolveu para o programa Página Um, da Rádio Renascença, assumindo convictamente todos os riscos e deveres da sua profissão, e da qual o júri lamenta o seu prolongado afastamento”.
A vedeta da noite, porém, era José Afonso e o jornalista Alexandre Pais no Diário de Lisboa explica que “ele catapultou grande parte da multidão em direcção à airosa salinha da Rua Eugénio dos Santos. Cantou ‘Grândola’, ‘Milho Verde’ e ‘Grândola’ como alternativa. Pôs todo o Coliseu a balançar, a cantar, a delirar”.
Note-se que rua Eugénio dos Santos foi o nome da rua das Portas de Santo Antão, onde está o Coliseu, de 1911, durante a República, até 1956, em pleno Estado Novo.
De facto, a lista de canções proibidas em cima da hora do concerto pela Direcção Geral de Espectáculos, publicada no livro que já referi de Eduardo M. Raposo, incluía várias canções de José Afonso como “Venham mais Cinco”, “Menina dos Olhos Tristes”, “A Morte Saiu à Rua” ou “Gastão Era Perfeito” e foi por isso que José Afonso acabou por cantar duas vezes a “Grândola, Vila Morena” e uma vez o tema de raiz popular chamado “Milho Verde”, uma canção originária da Beira Baixa que fazia parte, tal como “Grândola, Vila Morena”, do histórico álbum de 1971, Cantigas do Maio.
MILHO VERDE
Milho verde, milho verde
Ai, milho verde, milho verde
Ai, milho verde, maçaroca
À sombra do milho verde
Ai, à sombra do milho verde
Ai, namorei uma cachopa
Milho verde, milho verde
Ai, milho verde, milho verde
Ai, milho verde miudinho
À sombra do milho verde
Ai, à sombra do milho verde
Ai, namorei um rapazinho
Milho verde, milho verde
Ai, milho verde, milho verde
Ai, milho verde, folha larga
À sombra do milho verde
Ai, à sombra do milho verde
Ai, namorei uma casada
Mondadeiras do meu milho
Ai, mondadeiras do meu milho
Ai, mondai o meu milho bem
Não olheis para o caminho
Ai, não olheis para o caminho
Ai, que a merenda já lá vem
Pedro Tadeu
Panfletos Antena 1
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