Manifestações como a de ontem estão ocorrer um pouco por toda a Europa que voltou a ser ocidental como na guerra fria. É evidente que enquanto existir um mínimo de liberdade e de Estado cada europeu tem direito a reclamar melhores serviços de saúde e os seus trabalhadores melhores remunerações, de gritar não me toquem na reforma, nem na idade dela, como em França, ou de reclamar tempo de serviço, aumentos e carreiras como os professores em Portugal. Mas, se cada um pensa em si e trata de si, resta o problema de todos. Resta o «pequeno» problema de estar a morrer (ou a ser morto) o Estado que confere esses direitos. Não está em morrer (ou em crise, numa expressão mais doce) apenas pelas manifes, mas também por elas, porque aumentam o stress (a tensão) sobre o Estado, promovendo a sua rutura.
De facto as organizações sindicais na Europa continental estão a lutar contra um falso inimigo. Os governos que elas tomam como inimigo estão sob ameaça de um inimigo muito mais poderoso e implacável do que os sindicatos, as oligarquias dominantes a nível planetário. Os governos europeus são hoje instrumentos das oligarquias americanas, sem excepção que se possa apontar. Em Inglaterra, que desde o governo Tatcher é o consulado geral dos EUA na Europa, está deliberadamente instalado o caos antes da imposição (natural) de uma nova ordem para criar uma sociedade que se antevê disfuncional como a dos EUA. Para estes governos as manifes e greves já nada alteram (escorrem na capa da sua indiferença ou desprezo), quem quer saúde ou transporte paga e trata de si, quem quer reforma paga um fundo de pensões, quem quer educação manda os filhos para um colégio privado. O governo de sua majestade já se dispensou dessas preocupações, ignora a contestação, os ministros demitem-se e fazem negócios, organizam parties. A Europa continental vai por esse caminho para o mesmo destino.
A guerra na Ucrânia também serve para derrubar governos europeus com um programa social mínimo e impor governos ultraliberais. Não é possível pagar a guerra na Ucrânia (e a reconstrução do que restar dela) e um estado-providência. Neste quadro, os chefes sindicais, tradicionalmente de esquerda, têm de arrastar os seus seguidores para o confronto com os governos que serão substituídos por outros de direita que erradicarão o estado-social A competição pela adesão de uma clientela educada no egoísmo individual e de casta coloca os dirigentes sindicais no dilema de serem eles a servir a droga que causa prazer momentâneo, mas mata a longo prazo, ou de perderem a clientela para quem se presta a fornecer a droga. No final o resultado é o mesmo. É indiferente morrer às mãos de um bem ou de um mal intencionado!
O jornal El País publica hoje um artigo de opinião que ajuda a entender o que está em jogo: “Estado de bem-estar social: história e crise de uma ideia revolucionária. A ideia de proteger o cidadão do berço ao túmulo está em apuros. Uma das causas é a crise orçamental dos Estados, com um envelhecimento da população sustentado por menos trabalhadores em piores condições Não há elemento mais reconhecido da sociedade de bem-estar social do que o Sistema Nacional de Saúde britânico; Era a joia da coroa e a inveja de todos os países, e hoje está em ruínas. Na França, a luta rua por rua está a ser travada pelo futuro das reformas, com as maiores mobilizações populares em décadas, indiferentes à contabilidade de mercearia: as receitas não chegam para as despesas. Em todos os saíses, discute-se se a educação continua a ser o elevador social que foi construído décadas atrás ou, em vez de promover a igualdade de oportunidades, gera um “monopólio de oportunidades” para os mais ricos. Não há dinheiro para universalizar o atendimento aos mais dependentes. Finalmente, o teletrabalho e outras formas contemporâneas de emprego (uberismo) servem para dessocializar o mercado de trabalho: cada vez mais pessoas ficam fora dos acordos coletivos, e o direito do trabalho duradouro e com direitos é uma miragem. O estado de bem-estar social, a revolução silenciosa que explodiu após a Segunda Guerra Mundial liderada pelo trabalhista Clement Attlee, está em grave crise. Na Espanha, todas os sintomas da doença social e política estão presentes: saúde, pensões, educação pública e universal, assistência e reforma estão no centro da batalha política diária. (Em Portugal sucede exatamente o mesmo) O nosso país (a Espanha, mas também Portugal) queria entrar na Europa, conseguiu-o há quatro décadas, não só em busca das liberdades proibidas no franquismo (salazarismo), mas também para ter o mesmo sistema de proteção social que os países mais avançados da Europa. Hoje em Espanha (e em Portugal) todas as crises dos sistemas dos países europeus estão presentes e no centro da batalha política diária. Em 1991, apenas cinco anos após a entrada da Espanha na União Europeia, o líder de direita José María Aznar escreveu (premonitoriamente): “Somente aqueles que continuam a desejar esse modelo dirigista aspiram a um ressurgimento do estado de bem-estar social. Vale a pena então falar sobre o estado de bem-estar social? É necessário fazê-lo porque há algo inquestionável: o estado de bem-estar social é incompatível com a sociedade de hoje. (Passos Coelho diria o mesmo alguns anos depois) Temos de ser muito claros: o Estado social só entrou em colapso por causa da sua própria inadequação e anacronismo. “(Fim de citação)
Na realidade o estado social está a colapsar porque o neoliberalismo se tornou o pensamento único na Europa, porque os cidadãos em geral, incluindo as corporações (de assalariados, de técnicos qualificados, de profissionais liberais) entraram em competição entre si, lutam entre si para abocanhar a maior parte do conteúdo do baú do orçamento do Estado (uma luta visível nos contratos por ajuste direto de entidades públicas com indivíduos e empresas). A ideologia dominante na sociedade e nas organizações sindicais é a que George Orwell antecipou em Triunfo dos Porcos: todos os trabalhadores são iguais, mas uns são mais iguais que os outros, os mais aptos a demonstrarem a importância do seu trabalho. As manifes servem esse fim: vejam, nós somos capazes de parar o país, logo, paguem-nos mais! Como na selva, sobrevivem os mais competentes a caçar, mesmo à custa de destruírem o equilíbrio na reserva de caça. A manife dos professores é parte desta luta entre grupos e tem a legitimidade do cosi fan tutte, se todas o fazem. Ou a do gang dominante nas mafias de Nova Iorque ou Chicago.
Quanto às vitórias, que os chefes sindicais, e os manifestantes, cada um pelas suas razões, depois dos festejos, não tenham de dizer destas manifes como Pirro a um dos seus apoiantes que celebrava com exuberância a vitória contra os romanos: “uma outra vitória como esta causará a minha completa ruína”, pois havia perdido uma grande parte das suas forças e quase todos os seus amigos.
Carlos Matos Gomes
Sem comentários:
Enviar um comentário