Quando fui do Plano Nacional das Artes, em 2015-16, argumentei que mais do que investir em grandes redes, era preciso investir em livrarias de rua. Não apenas por simpatia, mas para evitar essa concentração. A falência da Livraria Cultura é também sintoma de um sistema que não funciona mais. Estão surgindo novas pequenas livrarias de rua, espero que agora alguma coisa mude.
Umas de maior importância que outras. Outrora assim acontecia. É por isso que gosto de as relatar para os mais novos saberem o que fizeram os seus antepassados. Conseguiram fazer de uma coutada, uma aldeia, depois uma vila e, hoje uma cidade, que em tempos primórdios se chamou Fredemundus. «(Frieden, Paz) (Munde, Protecção).» Mais tarde Freamunde. "Acarinhem-na. Ela vem dos pedregulhos e das lutas tribais, cansada do percurso e dos homens. Ela vem do tempo para vencer o Tempo."
Rádio Freamunde
https://radiofreamunde.pt/
domingo, 12 de fevereiro de 2023
Quando tinha uns 18 anos:
Trabalhei por pouco tempo na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Não durei muito, até mesmo porque aquele moleque cabeludo com roupas rasgadas não era exatamente o modelo de vendedor do que já era um supermercado de livros. Mas guardei ao menos duas histórias bastante difíceis da minha experiência lá.
A primeira foi quando um senhor bastante pobre, com roupas e jeito muito simples, entrou na livraria e me perguntou, bastante tímido, se eu tinha um livro que ele precisava comprar para a sua filha. Ele era analfabeto, então a filha tinha escrito, com uma letra de criança, o nome do autor e o título num pedaço de papel. Eu peguei o papel e fui procurar o livro. Quando voltei, com o livro na mão, não encontrei mais o senhor. Perguntei para o segurança se ele tinha visto, e ele me disse que havia retirado o senhor da loja, porque ele estava "afastando outros clientes". Corri pelo Conjunto Nacional, fui em todas as saídas, procurei na rua, mas nem sinal dele. Sentei então no chão, na calçada, com aquele papel manuscrito na mão, e chorei, pensando naquele homem voltando para a casa humilhado e sem o livro para a filha. Eu estava com o papel que ao menos possibilitaria ele procurar o livro em outra livraria.
A outra situação foi quando um comprador me perguntou por um livro do William Blake. Opa, ali eu estava em casa. Ele estava procurando uma antologia que havia acabado de ser publicada no Brasil, mas ficamos conversando e acabei o convencendo a comprar uma obra completa, em inglês, com capa de couro e tudo o mais. Me senti o melhor vendedor do mundo: ele queria comprar um livro de 20 reais, saiu feliz da vida com um de 150. Mas a minha alegria durou pouco: logo levei uma grande bronca do gerente, que me disse para nunca mais demorar tanto tempo atendendo um só cliente.
A Livraria Cultura, no começo dos anos 1990, já era isso: um lugar desumanizado, mais preocupado com números do que com letras. E continuou sendo. Depois, com a editora, sofríamos com os pedidos pingados que a Cultura fazia com a gente: um livro num dia, outro dois dias depois. Queriam imediatamente a entrega e ameaçavam de ruptura comercial se não fizéssemos, mesmo com nosso argumento de que o custo de envio praticamente comia toda a nossa margem de lucro com a venda do livro. Jogavam duro demais, e podiam, porque possuíam uma imensa fatia do mercado e estavam turbinados com empréstimos públicos e tudo o mais.
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