Há quem ainda deseje estes tempos. Tempos negros como as fotas e de miséria.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Muito foi feito pelas autoridades para demolir
os chamados “bairros de lata” que existiram durante décadas nas periferias de
Lisboa ou do Porto mas também em cidades com Aveiro ou Setúbal. Com muito
esforço por parte de toda a população portuguesa, que contribuiu com os seus
impostos para a construção de habitações dignas para estas famílias, os bairros
ilegais e degradados foram desaparecendo. No entanto, à medida que algumas
pessoas iam sendo realojadas, outras apareciam, vindas dos PALOP, e construíam
novos bairros de lata. Também essas pessoas foram realojadas.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
O fenómeno dos bairros de lata de Lisboa
parecida algo distante e longínquo. No entanto, nos últimos tempos, fomos
surpreendidos de novo com esta realidade. Alguns bairros de barracas continuam
a existir nos concelhos da Amadora, Almada e Seixal.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Pelos fins do século 19 começaram a ouvir-se
vozes contra as condições degradantes de habitação, principalmente nos grandes
centros. Políticos como Augusto Fuschini e higienistas como Ricardo Jorge
denunciavam no Parlamento e na Imprensa as miseráveis condições de habitação em
Lisboa e no Porto. Com o processo de industrialização destas duas cidades ao
longo da segunda metade do século, as vagas de imigrantes rurais tinham engrossado
a população citadina e o mercado de arrendamento convencional não podia
satisfazer essa procura. Os bairros populares, como Alfama e o Barredo, ficaram
sobrepovoados e os novos habitantes encontraram alojamento em condições
improvisadas, como os pátios lisboetas, conventos desafectados e palácios
arruinados.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Em breve, mercê de construtores oportunistas,
foi surgindo um novo mercado de arrendamento, constituído por módulos de
habitação precários e de dimensões ínfimas, sem as mínimas condições de
higiene, ocupando terrenos sobrantes no interior de quarteirões. Foram as ilhas
do Porto e os pátios e depois as vilas em Lisboa. Era esta a situação
denunciada, clamando-se pela intervenção dos poderes públicos, em nome da
higiene e da moral.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Nessa época não haveria ainda barracas, senão
talvez como construções esparsas, não constituindo aquilo a que veio chamar-se
os bairros de lata. Estes terão começado a surgir nos primeiros anos do século
passado, principalmente na periferia de Lisboa. Mas o Estado, às costas com
défices crónicos do orçamento, demorava a intervir. Enquanto a situação se ia
agravando, algumas iniciativas isoladas de carácter filantrópico eram lançadas
nas duas cidades; Francisco Grandella e o banqueiro Cândido Sotto Mayor em
Lisboa e o jornalista Bento Carqueja no Porto são alguns dos seus protagonistas.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Foi preciso esperar até 1918, quando no
consulado de Sidónio Pais surgiram as primeiras medidas de protecção estatal à
construção de habitações económicas. E logo no ano seguinte são lançados os
primeiros “Bairros Sociais”, em Lisboa, no Arco do Cego e na Ajuda, que levaram,
no entanto, mais de uma década a ficar concluídos.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Com o advento do Estado Novo estas preocupações
conhecem um novo impulso: em 1933 é criado o regime das “Casas Económicas”, de
propriedade resolúvel, corporizando as ideias de Salazar quanto à família: casa
própria, modesta e bem portuguesa — em conjuntos que pretendiam reproduzir a
estrutura das aldeias, incrustados na cidade.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Em 1938, pela mão de Duarte Pacheco, é assumido
directamente o combate aos bairros de lata na capital, através do regime das
“Casas Desmontáveis”, feitas de chapas de fibro-cimento e para durarem 10 anos
como alojamento temporário. Embora muitas tenham sido já substituídas, alguns
núcleos ainda persistem passado meio século, nos bairros da Boavista e da
Quinta da Calçada. Foi dessa maneira que se fez desaparecer o célebre Bairro
das Minhocas, localizado perto do Rego. Acreditou-se então que o fenómeno das
barracas era controlável a prazo, quando na verdade estava para lavar e durar.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Em 1945 são criadas as “Casas para Famílias
Pobres”, já que os habitantes das barracas não podiam aceder às “Casas
Económicas”. E outras iniciativas surgem na década de 40, não já com o
objectivo de eliminar as barracas, mas de acudir a outros estratos sociais um
pouco por todo o País, já que o problema da habitação se agravava: “Casas de
Renda Económica”, “Casas de Renda Limitada”, “Casas para Pescadores”. Tiveram
especial importância neste período as Caixas de Previdência, no tempo em que as
prestações pagas por trabalhadores e empresas ainda se capitalizavam e
investiam a um juro de 7% ao ano.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Entretanto é preciso esperar por 1956 para ver
surgir uma acção de combate às ilhas do Porto: um programa de construção de
6.000 habitações em 10 anos, destinado aos moradores dessas ilhas. Lá estão
numerosos bairros municipais, mas as ilhas continuaram a existir na cidade.
Entretanto, em Lisboa novos bairros de lata iam aparecendo, espalhando-se pelos
concelhos limítrofes.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
É então (1959), por decreto do Ministério da
Presidência, ocupado por Pedro Teotónio Pereira, que é criado um Gabinete
Técnico de Habitação na CML e se lança um programa específico de habitação
social em termos integrados, de que resultaram os bairros de Olivais Norte e
Sul, e depois Chelas, este ainda em desenvolvimento. Os dois bairros dos
Olivais ficam na história de Lisboa como realizações positivas em termos de
planeamento urbano, de prazos de execução, de integração de diferentes classes
sociais, de intervenção de diversas entidades promotoras, de construção de
equipamentos e de arranjo dos espaços livres. É nestes bairros, e no do Viso,
no Porto, que o regime se vê obrigado a abrir mão do ideal da casa unifamiliar
para o regime de “Casas Económicas”.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Mas o fenómeno já era alarmante. Em 1963 o Diário
Popular realizou um inquérito exaustivo ao problema da habitação, cujas
conclusões foram organizadas em 19 artigos a publicar no jornal, e que foi
realizado por uma equipa de reportagem composta por Urbano Carrasco, Mário
Henriques, Corregedor da Fonseca e Nuno Rocha. O primeiro artigo ainda chegou a
ser publicado. No respectivo título dizia-se que o número de barracas em todo o
País passara de 10 mil em 1959 para 50 mil em 1963.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Tendo em conta o número médio de
pessoas por família nos anos 60 do século XX, o número de pessoas a viver em
barracas ou bairros de lata poderia oscilar entre as 200 mil e as 300 mil. Os
restantes dezoito artigos, foram todos cortados pela censura. É um documento
impressionante de como nesses tempos eram ocultadas aos portugueses as
realidades do próprio país.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
E, no entanto, a década de 60 viu ocorrer dois
importantes fenómenos que actuaram como válvulas de escape na multiplicação das
barracas: uma emigração massiva para a Europa, que absorveu fluxos
populacionais habitualmente dirigidos para as duas áreas metropolitanas e,
sobretudo na região de Lisboa, a proliferação dos chamados bairros
clandestinos, que fizeram desviar dos bairros de lata muitos dos que tinham
alguma possibilidade de investimento. Em 1964 é pela primeira vez contemplada a
habitação nos Planos de Fomento.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Durante o marcelismo, em que foram
centralizadas todas as actividades do sector no Fundo de Fomento da Habitação,
foram lançados os chamados “Planos Integrados” (Lisboa, Almada, Setúbal,
Aveiro), com o objectivo de estender o exemplo dos Olivais, mas pouco se
avançou. Um Colóquio sobre a Habitação e outro sobre o Urbanismo (1969) permitiram,
no entanto, o arejamento dos diferentes problemas em aberto, até então
demasiado circunscritos aos gabinetes ministeriais. Mas a Censura, agora
denominada Exame Prévio, continuava a impedir que muito dos aspectos sociais
desta questão pudessem ser discutidos publicamente.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Veio o 25 de Abril e um processo que hoje
podemos classificar de histórico veio ao cima, com um dinamismo tal que se
tornou possível uma vez mais prever o desaparecimento das barracas e das ilhas:
o SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado por Nuno Portas, Secretário
do Estado da Habitação dos primeiros governos provisórios. Organizados os
habitantes dos bairros degradados em Comissões de Moradores, estas desencadearam
um processo de reivindicação de Norte a Sul do País sob a égide da palavra de
ordem “Casas Sim, Barracas Não”. Com o apoio estatal organizaram-se muitas
dezenas de equipas técnicas pluridisciplinares, englobando desde arquitectos e
engenheiros a sociólogos, economistas, geógrafos e trabalhadores sociais, que
se encarregaram dos projectos, entretanto discutidos em assembleias gerais de
moradores.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
As Câmaras Municipais, através de processos
expeditos, iam disponibilizando os terrenos necessários. Muitos destes
projectos iniciaram a construção, embora a grande maioria não tivesse tido
tempo de atingir essa fase. É que em 1976 o sistema foi repentinamente suspenso
por decisão governamental, sendo ministro da Habitação Eduardo Pereira, no
quadro da chamada normalização democrática: o SAAL foi considerado
excessivamente revolucionário face ao sistema representativo, por se
encontrarem no seu alicerce formas de democracia directa.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Passadas duas décadas, o nível de vida das
populações subiu, o parque automóvel cresceu, mas nem por isso as barracas e as
ilhas viram reduzido o seu número. As que são eliminadas no decurso de
programas de habitação social são muitas vezes substituídas por outras. Essas
formas infra-humanas de habitação mostram assim constituir um problema
estrutural da sociedade portuguesa. Ao longo dos últimos anos, a capacidade de
realização de alguns municípios tem desenvolvido programas de habitação com a
finalidade de acabar com o flagelo, mas a situação não dá mostras de melhorar,
agravado o fenómeno com a vaga de imigração oriunda dos PALOP. Permanece como
questão de fundo a enorme distância entre os valores pedidos pelo mercado e as
possibilidades económicas de um vasto sector da população.
Bairro de lata em Lisboa (Fernando Mariano Cardeira)
Como há 100 anos, torna-se evidente que só com
uma forte intervenção da Administração Central será possível proporcionar
habitações decentes às populações que delas necessitam. Resta saber se será
desta vez que as barracas vão acabar. Existem, neste momento, poucos bairros
degradados em Portugal, sendo que a maioria deles persiste ainda em concelhos
da periferia de Lisboa. E isto sem esquecer que o problema da habitação não se
esgota nas barracas. Longe disso.
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