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segunda-feira, 5 de abril de 2021

Vai para a Venezuela, pá!

Há dias, numa entrevista na RTP a Lula da Silva, o entrevistador inquiriu com voz grave e olhar sério o antigo presidente do Brasil sobre as suas relações com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. O tom da pergunta levava a mensagem sublimar: O que tu queres é um Brasil como a Venezuela de Maduro!

A pergunta não é estúpida, nem maldosa: É um exercício de manipulação por parte de quem confia na falta de sentido crítico dos espetadores, reduzidos a uma massa imbecilizada. A pergunta também não é uma artimanha nova: É uma repetição de uma forma primária, mas eficaz, de manipulação.

Quantas vezes já ouvimos perguntas do género: Porque não vais para Rússia, ou para a Sibéria, ou para Cuba, ou o que tu querias era uma Coreia do Norte? Curiosamente ninguém diz: vai para a Arábia Saudita, ou: vai para a Palestina dançar com os israelitas, ou para as Filipinas!

As afirmações do “vai para” ou “o que tu querias era” é estúpida porque a história dos povos se faz com o seu passado (com o tempo) e com o seu lugar no mundo (espaço). Quando os romanos estiveram na Península Ibérica nenhuma cidade da península foi Roma, e na península Ibérica não se vivia como na península Itálica. Quando os árabes ocuparam a Península, nem Córdova, nem Toledo, nem Granada foram Bagdad, ou Damasco. Roma também não foi Jerusalém. Washington a atual capital do império não foi nem é Londres.

Intimar alguém que tenta explicar as causas de o regime norte coreano ser como é a ir para a Coreia, ou alguém que tenta perceber as causas do regime Venezuela ser o que que é a ir para a Venezuela, ou a transformar-se num apóstolo de Kim Jong un, num caso, ou em Nicolás Maduro, no outro, é uma manipulação grosseira.

Embora se perceba a intenção política, não deixa de ser um argumento estúpido e, no caso de ser feita por um agente da comunicação social, é uma prova de falta de respeito pela inteligência dos seus espetadores ou leitores.

Aquino de Bragança, um goês anticolonialista, um dos grandes pensadores sobre os conceitos de Terceiro Mundo e Não Alinhamento, diretor da revista Afrique Asie, doutorado em Física, que tive o privilégio de conhecer, de com ele conviver e de ter ido por seu intermédio a Moçambique a convite de Samora Machel, de quem era conselheiro (tendo morrido com ele no avião em que regressavam ao Maputo) disse-me um dia a propósito dos acordos de Incomáti, de paz com a África do Sul, de que fora um dos arquitetos, que as nações, ao contrário das pessoas, não podem escolher os seus vizinhos: é a geografia que os determina e é com eles que têm de conviver. O Brasil não escolheu ser vizinho da Venezuela, nem da Colômbia, nem da Argentina…

Quando ainda hoje alguém utiliza o argumento: queriam transformar Portugal numa Rússia, ou numa Venezuela, ou numa Coreia o que salta à vista é a incapacidade de interpretar os factos, seja por desconhecimento da história, seja por dificuldade de análise, seja por preconceito ideológico.

Os ingleses, com os cruzados ingleses aliados a Afonso Henriques, estão em Portugal a determinar a nossa política desde a fundação da nacionalidade. Os arqueiros ingleses foram decisivos em Aljubarrota. A mulher mais importante da nossa História era inglesa (Filipa de Lencastre), o comércio e a indústria de Portugal esteve durante séculos na mão dos ingleses, os generais que venceram a invasão de Napoleão eram ingleses, os que contribuíram para o liberalismo eram ingleses e nós não somos ingleses! Graças a eles, também não somos espanhóis, já agora.

O mais contraditório e estúpido, a palavra é essa, nesta argumentação é que o grupo ideológico que entende que Lisboa pode ser Moscovo (Lisboa é do povo, não é de Moscovo, lembram-se?), que o Brasil pode ser a Venezuela, é o mesmo que rejeita que o salazarismo tenha sido um fascismo, ou um nazismo, porque a “alma” do nosso “bom povo” (isto é o resultado da conjugação de fatores humanos e geográficos) não o permitiria; o mesmo grupo que considera que Salazar não era Hitler, nem Mussolini, que Lisboa não era Berlim nem Roma, que Portugal não era a Alemanha ou a Itália, ou que a ditadura militar brasileira era apenas um regime desenvolvimentista e anticomunista, que os generais brasileiros eram bons pastores e distintos cavalheiros muito diferentes dos outros ditadores sulamericanos é o mesmo que induz a dúvida se Lula da Silva não será (após 2 mandatos) um Nicolás maduro que fala português!

Insinuar que quem entende (ou procura entender) o poder da geografia na situação da Venezuela e do poder dos Estados Unidos sobre a América Latina só pode querer que o Brasil seja uma Venezuela e que seja um seguidor de Maduro é uma triste exibição ou de limitações intelectuais, ou de desprezo pela inteligência dos outros, ou de uma mera prestação de um servicinho.

Quando se muda o tan-tan de lugar, ele muda de som… — Provérbio dos povos Kassi, dos Camarões.

Autor Carlos Matos Gomes

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