Em novembro passado, vários
artistas brasileiros foram convidados a dar o seu testemunho, dez minutos, não
mais, numa audiência pública do Supremo Tribunal de Justiça (STF). O assunto
era censura. A mais alta instância do poder judicial brasileiro queria conhecer
as queixas, ou ainda só receios, que os artistas teriam sobre a liberdade com
que se exprimem.
Semanas depois, os humoristas do
Porta dos Fundos fizeram uma sátira intitulada Especial de Natal, com um Jesus
um bocado iconoclasta, que passou com sucesso na Netflix e indignou alguns. O
presidente Jair Bolsonaro espingardou, com palavras, contra um alegado insulto
aos cristãos e uns terroristas bombardearam, com cocktail molotov, a sede do
Porta dos Fundos. Nessa altura, o vídeo do testemunho que Gregório Duvivier, um
dos humoristas do Porta dos Fundos, havia dado na tal na audiência do STF foi
muito divulgado por cá.
Duvivier é visitante assíduo de
Portugal e amigo de Ricardo Araújo Pereira. Foi deste, disse ele no seu
depoimento no STF, que recebeu esta dica: o padroeiro dos humoristas é São
Lourenço (225-258). Patrono por legítimas razões, pois, nos tempos iniciais do
catolicismo romano, condenado a morrer sobre uma grelha, disse ao carrasco, a
meio do martírio: "Este lado já está, podem virar-me".
Além de piadista, São Lourenço
revelou-se também um bom orago. Aquilo que Duvivier informou em novembro, no
STF, confirmou-se em dezembro, na sede do Porta dos Fundos: a mais risonha das
artes, o humorismo, tem tendência em acabar mal.
Mas, para mim, o mais notável dos
depoimentos naquela iniciativa tão democrata e culta do STJ foi o de Caetano
Veloso. O cantor baiano, sabe-se, não é um orador. Mas essa falta torna-se
virtuosa com aquilo que ele envolve as palavras. Lembrem-se dele a cantar
Cucurrucucu Paloma, em Hable con Ella, de Almodóvar, e à doçura acrescentem, no
discurso aos juízes, verdades inesperadas.
Caetano Veloso falou de si. De
por palavras ter sido preso e obrigado a exilar-se. E de, quando voltou ao
Brasil, ainda na ditadura, um censor querer tirar-lhe de uns versos cantados a
palavra reggae - palavra ainda nova, em 1972 -, porque a julgava obscena ou,
pior, subversiva. "São coisas de grande amargura na nossa vida" -
isso de roubarem aos artistas uma palavra que seja... Parece pouco, mas com
aquela voz comovente tudo nos abala.
Calculem agora o que nos acontece
quando se segue o que se seguiu. Disse o artista, sobre esse problema de
artista: "Esse é um valor secundário." E, inesperadamente, Caetano
apontou outro lado: "O valor maior na liberdade de expressão é o
público." Repetiu: "A liberdade de expressão é mais sobre o direito
de ouvir do que sobre o direito de dizer."
E, como numa velha canção
mexicana, insistiu, com os mariachi em compasso ternário: "O público tem o
direito de ter acesso a ideias várias, inclusive àquelas diferentes das que ele
já conhece e aprova." E num cucurrucucu final falou do "direito do
público a ser exposto ao novo, ao desconhecido - é aí que sobretudo reside o
direito à liberdade de expressão".
Dois dias depois do discurso de
Goebbels, nas universidades alemãs começou a queima de livros dos escritores
excomungados. Centenas deles, Thomas Mann, Walter Benjamin, Robert Musil, Erich
Maria Remarque, Freud... Perderam eles - mas sobretudo, como disse Caetano
Veloso, perdemos nós.
Ferreira Fernandes
No DN
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