Este artigo foi escrito ao abrigo da liberdade de expressão,
consagrada na Constituição, como direito cujo conteúdo e limites não podem
deixar de ser balizados por outros direitos fundamentais igualmente inscritos
na Constituição que com ele podem conflituar e até sobrepor-se se os valores
por estes defendidos forem de nível superior aos contidos naquele direito.
Quer isto dizer que não vai ser necessário para escrever o
que pretendo recorrer à mais recente (e inacreditável) jurisprudência do STJ e
menos ainda à do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, a pretexto de
garantirem a liberdade de expressão e de imprensa, permitem que se violem os
mais elementares direitos de personalidade, como ainda recentemente aconteceu
com o despacho sobre uma providência cautelar interposta por Isabel dos Santos
contra uma conhecida denunciante profissional.
Dito isto, é com alguma apreensão que antevejo o próximo
encontro entre os PGR dos dois países. Este encontro tem certamente a ver com o
“caso Isabel dos Santos” e, como foi solicitado pelo PGR de Angola, é
igualmente óbvio que Angola pretende saber até onde as autoridades portuguesas
estão dispostas a ir para a ajudar nos
processos em curso contra Isabel dos Santos bem como nos assuntos correlativos
com incidência portuguesa.
Este encontro, aparentemente disfarçado de encontro de
natureza estritamente jurídica, não passa todavia de um encontro político de
alto nível. E é por esse lado que a posição do MP tem de ser encarada, tanto
mais que se trata de uma matéria que envolve interesses portugueses cuja
importância e magnitude caiem, em grande medida, fora do raio de acção das
autoridades judiciárias.
Convém contextualizar devidamente a questão para que se
compreenda o que está em causa, sendo certo que nessa contextualização não
cederemos, um milímetro que seja, ao politicamente correcto, nem tão pouco nos
deixaremos influenciar, por medo, vergonha ou qualquer outra razão, pela
magnitude da campanha em curso, fazendo o possível por nos mantermos fiéis à
liberdade de análise tanto quanto as nossas capacidades intelectuais e de
informação o permitirem.
Assim, é preciso começar por dizer que está em curso uma
gigantesca campanha contra certos interesses angolanos promovida por interesses
angolanos rivais. Esta campanha, como qualquer outra campanha, é uma campanha
paga e que tem por agentes executivos vários órgãos de informação
internacionais, entre os quais, em Portugal, os dois mais importantes ligados à
Impresa – SIC e Expresso. Todavia a partir do momento em que a documentação
começou a ser publicada em apoio das teses que a campanha tem por objectivo
veicular, outros se juntaram àqueles órgãos de informação pois como sempre acontece nas caçadas dos
predadores há os que se contentam com os
restos da carcaça, de que o Correio da Manhã e a CMTV são, no caso, o principal
exemplo.
Esta campanha, contrariamente ao que também foi veiculado,
não envolve qualquer investigação jornalística nem tem por base a apropriação e
recolha, lícitas ou ilícitas, de documentos, nem tão-pouco a consulta das
famosas “fontes anónimas”, antes resulta da entrega de uma apreciável
quantidade de documentos, facultados por Angola, a entidades previamente
escolhidas e contratadas para prosseguirem determinados objectivos.
Os documentos a que importava dar a mais profusa publicidade
estavam devidamente assinalados e, como sempre, são suficientemente sugestivos
para, acompanhados das palavras adequadas, produzirem o efeito em vista.
O objectivo fundamental da campanha é destruir o “império de
Isabel dos Santos”, desacreditando-a pessoal, política e empresarialmente,
criando por todo o lado onde aqueles interesses existam um clima inibitório ou
até intimidatório que leve à sua marginalização e ostracização. Como dano
colateral ou indirecto necessário resultaria também a completa
descredibilização de José Eduardo dos Santos, bem como do seu contributo na
construção da “Pátria angolana”.
Dos documentos entregues ao “consórcio internacional de
jornalistas” não decorre qualquer facto indiciador da origem, lícita ou
ilícita, da fortuna de Isabel dos Santos, referindo-se todos eles a um período
de tempo relativamente recente, coincidente com a parte final da sua breve
passagem pela Sonangol até ao presente. Evidentemente, os promotores da
campanha bem como os seus agentes executivos pretendem com base em indícios
mais ou menos conclusivos resultantes de documentos recentes fazer retroagir os
seus efeitos a todo o património pessoal e empresarial de Isabel dos Santos,
embora, como já acima se disse, nada nesses documentos tenha a ver com a origem
da sua riqueza
Este juízo tanto quanto possível objectivo não co-envolve
qualquer avaliação ética dos protagonistas angolanos em confronto e tem apenas
por objectivo situar a defesa do interesse português, o mesmo é dizer a defesa
do interesse dos portugueses.
Na defesa deste interesse o Governo português não pode
deixar-se influenciar pela campanha em curso e muito menos pelas arremetidas
dos que, em Portugal, tem por missão promovê-la.
O Governo também deve fazer um esforço para manter “orelhas
moucas” às vozes irresponsáveis de alguns que lhe são próximos, sejam essas
vozes de “viúvas de Savimbi”, de delatoras (bufas) profissionais, de
“supremacistas brancos” ou de uma certa esquerda “de feição neoconservadora”
para a qual os negócios só se podem fazer com quem tenha no bolso, sempre
actualizados, os certificados do registo criminal passados pelas entidades dos
últimos países onde exerceram a sua actividade, tal e qual como o certificado
de vacinas contra a febre-amarela, e, além disso, sejam cidadãos de países que
não constem do seu extenso “índex (librorum prohibitorum) inquisitivo”.
As consequências políticas, económicas e sociais resultantes
do desmembramento, extinção ou paralisação do “império empresarial” de Isabel
dos Santos em Angola são da responsabilidade do Governo angolano, que
certamente já fez essa avaliação e tirou as suas conclusões.
Ora, a Portugal o que interessa é que os efeitos das
decisões do Governo angolano se não repercutam cá ou se repercutam com a menor
intensidade possível, porque, independentemente da imputação de culpas e
responsabilidades que possa ser feita, quem acaba por sofrer as consequências
directa ou indirectamente são os portugueses, pagando inclusive do seu bolso os
prejuízos apurados como continua a acontecer com o “saque bancário”, tenha ele
como causa próxima a “resolução” comunitária ou outra.
Assim sendo, é do interesse português manter boas relações
políticas e económicas com Angola, mas não será difícil demonstrar que não é do
interesse português nem do interesse angolano que Portugal se substitua a
Angola no desempenho das suas funções de soberania. Dito de outro modo, não é
do interesse português, nem o seu sistema jurídico o permite, sequer em relação
aos seus nacionais, fazer uma averiguação judicial da origem do património
pessoal e empresarial de Isabel dos Santos.
As autoridades portuguesas devem, relativamente a este
assunto, limitar-se de acordo com o direito português a averiguar possíveis
irregularidades, cometidas em Portugal, por cidadãos ou empresas de qualquer
nacionalidade, com base em indícios lícitos recolhidos em Portugal ou
fornecidos directamente pelas autoridades angolanas competentes. E nada mais.
É por estas razões que o encontro entre os PGR dos dois
países causa apreensão, já que a experiência demonstra que há da parte de
certas autoridades do foro judiciário uma forte tentação de imiscuição nos
assuntos políticos. Qualquer governo, de qualquer país, não teria a menor
dúvida de, num caso destes, transmitir, nos termos da lei e do interesse nacional,
as instruções convenientes ao Procurador Geral da República. É de esperar que o
Governo português também o faça, porque não há nada que faça pior a uma
democracia do que ter um país governado pelo poder judiciário.
Publicada por JM Correia Pinto
Do blogue Politeia

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