Estávamos em Agosto de 1974 e os
agentes da polícia política PIDE/DGS (os “pides”), presos na sequência do 25 de
Abril na cadeia penitenciária de Lisboa, haviam iniciado um novo motim. Era um
movimento em tudo idêntico ao que tinham desencadeado no início do mês e que
dera origem à constituição de uma
“comissão de inquérito”, composta por um representante de cada um dos três
ramos das Forças Armadas, da qual eu era relator, enquanto oficial miliciano do
Exército.
Tinha assumido essas funções na
qualidade de membro da Comissão de Extinção da ex-Pide/DGS e LP. Para tal,
havia sido colocado como assessor do general Galvão de Melo, membro da Junta de
Salvação Nacional. Galvão de Melo, da Força Aérea, era um dos sete membros da
Junta, que então dirigia o país, e, seguramente, a figura mais à direita dentro
daquele órgão. Por uma singular ironia, competia-lhe a tutela da Comissão de
Extinção da polícia política do anterior regime, tarefa que o não entusiasmava
por aí além. E, por outra singular ironia e fruto de diversas circunstâncias,
coube-me em rifa ser seu assessor.
Os pides consideravam então estar
a ser vítimas de uma imensa “injustiça”, seriam totalmente infundadas as
inúmeras acusações de torturas e atentados aos Direitos Humanos que sobre eles
impendiam, a esmagadora maioria jurava nunca ter feito outra coisa que não
fosse estar nas fronteiras a pôr carimbos nos passaportes. Uns anjos, em suma!
Descontentes com o prolongamento
da sua detenção e respectivas condições, mobilizados por um qualquer pretexto
conjuntural, os pides tomam alguns guardas da Penitenciária como reféns, abrem
o “gradão”, a porta de ferro que lhes permite invadir a parte central da
prisão, e anunciam que estão “à disposição” do general Galvão de Melo, que
acabara de fazer uma polémica e ultraconservadora proclamação televisiva, que
lhes terá ressuscitado a esperança de uma libertação rápida.
No auge desta nova crise, o chefe
da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, comandante Conceição e Silva, foi de
helicóptero ao Algarve, com o seu adjunto Alfredo Caldeira, para tentar obter
orientações de Galvão de Melo. Na conversa, o general, enfadado por ver
interrompida a sua estada no concurso hípico da Penina, terá deixado os seus
interlocutores de mãos a abanar.
Estávamos assim, num domingo à
tarde, reunidos no gabinete do director da Penitenciária, a discutir o que
fazer a seguir.
Esgotadas algumas hipóteses de
solução, o José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete de Galvão de Melo, decide
tomar o assunto em mãos: “Eu vou lá dentro falar com os pides. Quem é que quer
vir comigo?”. A idade tem destas coisas e a precipitação é uma delas. Por isso,
disse de imediato: “Eu vou contigo”. Arrependi-me no segundo seguinte, mas já
era tarde: cinco minutos depois estava a seguir a figura alta e corajosa do
então major (hoje general) Costa Neves e a entrar no meio de uma chusma de
pides, que sabíamos que tinham armas retiradas aos guardas e desconhecíamos se
tinham a intenção de também ficar connosco como reféns.
Enquanto o mar de pides se abria
como as águas do mar Vermelho, para ambos podermos chegar ao centro da prisão,
comigo numa taquicardia de tardio bom senso, recebo um leve toque num ombro e
volto-me, sobressaltado. Dou de caras com o “Navalhas”*, um colega de escola
primária em Vila Real, que eu não via há muito e desconhecia ter escolhido tão
distinta opção profissional.
“'Tás porreiro? Então por aqui?”,
saiu-me, num registo social, como se o estivesse a encontrar no Rossio, à porta
da Suíça. Apertei-lhe a mão, quase caloroso, para me dares ares de confiança
bem à vista do grupo, que tinha já cem olhos sobre mim, com o “Navalhas” a
retorquir-me: “É verdade! Quem também cá está é o “Bilrau”*, mas não aderiu”. O
“Bilrau” era também um antigo colega de liceu que, do mesmo modo, eu
desconhecia ter enveredado pela prestigiante carreira de pide. E o meu convívio
social-pidesco estendeu-se então, com a maior naturalidade, ao ausente
“Bilrau”: “Ó 'Navalhas', dá um abraço meu ao 'Bilrau'… e tive imenso prazer em
ver-te, pá!”.
Esta rápida sequência de vénias
de cordialidade passou-se, aparentemente, sem que o Costa Neves nada notasse,
entretido que estava já a lidar com os cabecilhas do motim e a transmitir ao
selecto auditório as presumidas orientações de Galvão de Melo. Dez minutos
depois, para meu imenso alívio, estávamos cá fora, sãos e salvos. Os pides acabaram
por não se render na sequência da nossa esforçada diligência e só foram
“convencidos”, horas mais tarde, pela chegada de um pelotão de “fuzos”, os
Fuzileiros Navais que Conceição e Silva mandou vir do Alfeite.
Desde esse inesquecível mês de
Agosto de 1974, nunca mais vi o “Navalhas” ou o “Bilrau”. Coitados, com o
acordo de Schengen, até ficaram sem fronteiras para praticarem a sua nobre
profissão. Eles que só punham carimbos em passaportes...
(Estes nomes podem não ser
exatamente os reais, mas não aceitarei deixar estes últimos sobreviverem no
texto, se acaso vierem a surgir em qualquer comentário’
Publicado por Francisco Seixas da
Costa à(s) 11:30
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