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sábado, 22 de dezembro de 2018

O Ministério Público, a autonomia e a democracia:

(Nem sempre concordo com os pontos de vista do MST, sobretudo quando trata os funcionários públicos como um bando de calaceiros privilegiados. Contudo, tenho que lhe reconhecer a coragem de defender as suas opiniões, muitas vezes contra ventos e marés, com destemor e desassombro. 
É o que passa nesta crónica onde revela a coragem de discutir frontalmente a “independência do Ministério Público”, tema perante o qual quase todos os políticos e outros comentadores se agacham cobardemente, fechando os olhos à bandalheira em que a Justiça se transformou no seu conúbio com uma comunicação social cada vez mais venal e populista.
Comentário da Estátua, 22/12/2018)

 Começo por dizer que, em boa verdade, creio que toda esta acesa discussão sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público, caso a mesma seja alterada, será, na práctica, sem consequências. Porque, mesmo que venha a haver uma maioria de membros “civis”, chamemos-lhes assim, no dito Conselho, eles tenderão fatalmente a comportar-se e a decidirem tal como os membros oriundos do próprio corpo do MP: porque escolhidos cautelarmente com tal perfil, por osmose corporativa ou por temor reverencial. Nada de essencial mudará, apesar de todo o espavento que por aí vai. Todavia, a discussão é certamente importante em termos políticos e eloquente em termos de demarcação de territórios.
Comecemos pela questão constitucional, trazida a terreiro pelos magistrados do MP e respectivo sindicato e, tão extemporânea e insolitamente, pelo próprio Presidente da República, o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa. A autonomia do MP, garantida na Constituição, nada tem que ver e em nada colide com uma eventual maioria de membros “civis” do Conselho, assunto sobre o qual a Constituição é omissa. E, muito embora, por mais que isso repugne à corporação em causa, eu entenda que a própria autonomia do MP — nos termos amplos e absolutos em que existe e é praticada entre nós — também merecia ser discutida e questionada, a verdade é que a letra da Constituição não o permite e não será, obviamente, um Conselho cujos poderes são apenas os de gestão e disciplina do corpo do MP, que se atreveria a ir meter o nariz nos processos em mão dos magistrados, dizer-lhes o que deveriam ou não investigar, quando deveriam acusar ou arquivar, independentemente de a sua composição maioritária ser uma ou outra. Além de mais, alguém imagina que os membros do Conselho nunca tenham lido o “Correio da Manhã” e desconheçam quem sejam os seus amigos de estimação?
O argumento, aliás, não resiste à comparação com o que se passa com o órgão similar dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura, onde a maioria dos membros são “civis”, ao contrário do que sucede no CSMP. Ora, se muitos países há em que os magistrados do MP não gozam da independência e autonomia (pelo menos, nos termos amplos que gozam entre nós) — porque se entende que assim os governos não podem ter uma política de Justiça nem podem ser responsabilizados por ela — não há nenhum país onde não se entenda que a independência e total autonomia dos juízes não seja essencial à democracia. Não sendo Portugal excepção, como se justifica então que se viva tão pacificamente com os juízes a serem governados e fiscalizados por um Conselho onde a maioria dos membros não é juiz e só no caso dos magistrados do MP é que idêntico regime colocaria em causa a sua autonomia?
O que está subjacente a esta discussão é a coragem ou a falta dela para enfrentar um poder cada dia menos transparente e menos democrático
Se alguma questão constitucional se levanta aqui ela é, de facto, a intromissão, totalmente abusiva e insólita, nos poderes legislativos reservados da Assembleia da República por parte de outro órgão de soberania — o Presidente —, da procuradora-geral da República e do Sindicato do MP. O primeiro, ameaçando vetar um diploma da Assembleia antes de ele existir, a segunda ameaçando demitir-se se ele existir e o terceiro ameaçando com uma greve se os deputados se atreverem sequer a pensar no assunto. É caso para perguntar se alguém, porventura, se preocupou com a autonomia do Parlamento, por acaso também garantida na Constituição e antes de todas as outras?
Mas deixemos de lado as questões formais e vamos às substanciais. O que está aqui em causa é, afinal, muito simples de enunciar, embora salvaguardando que tudo isto é teórico, pois que, repito, é minha convicção que, mudando na superfície as coisas, nada de essencial mudaria. Em termos simples, o que se discute é se o MP — não todo ele, obviamente, nem sequer a maioria, acredito, mas parte liderante dele — deve ou não continuar a funcionar em roda livre, entregue a si mesmo e unicamente aos critérios éticos e funcionais dos seus pares. Se o corpo do MP deve ser a excepção no sistema de poderes e contrapoderes que caracterizam as sociedades democráticas, em que a cada poder se contrapõe outro poder, que o vigia e que, para isso, não pode ser controlado por si próprio. Mas, além disso, e indo do abstracto para o concreto, o que está subjacente a esta discussão, embora ninguém se atreva a dizê-lo em voz alta, é a coragem ou a falta dela para enfrentar um poder cada dia menos transparente e menos democrático. Ou, se preferirem e falando ainda mais claro, se, por exemplo, temos de continuar resignadamente a viver, indignados uns, radiantes outros, com o total desrespeito dos direitos dos arguidos, com a geral devassa da vida alheia, com a escandalosa violação da correspondência privada de quem nem sequer é objecto de suspeitas de qualquer crime, tudo promovido às claras por um indecente conúbio entre certos senhores magistrados do MP e a imprensa de sarjeta, perante o silêncio cúmplice do CSMP, do Sindicato e da hierarquia da PGR. Se temos de continuar a esboçar sorrisos irónicos de cada vez que lemos um comunicado da PGR determinando mais um “rigoroso inquérito” a mais uma escandalosa violação do segredo de justiça de um processo à guarda de um senhor magistrado do MP e que jamais, de memória de homem, terminaram com conclusão alguma, como se não houvesse forma de guardar o segredo ou de encontrar o seu violador — eles, cuja especialização é justamente a de guardar segredos e desvendar crimes.
Tudo isto é feito sob o santo e a senha do “combate à corrupção”, um salvo-conduto cujo simples enunciado tem o dom de pôr toda a gente a tremer de medo e veneração, abrindo as portas a tudo, tornando aceitáveis e inevitáveis coisas que só na pele se percebe como são repelentes, tornando dispensáveis coisas a que chamam “formalidades” e que, todavia, são muitas vezes o que distingue um estado policial de um Estado de direito. Quando a sagrada palavra “corrupção” é invocada, mesmo a imprensa de referência deixa de questionar procedimentos que noutras circunstâncias lhe levantariam mais do que dúvidas, com medo de ser arrolada como conivente ou complacente com os “corruptos” — ainda que muitas vezes a palavra “corrupção” sirva para abranger todo um mundo de outras coisas que nada têm que ver com um crime de corrupção em si mesmo.
E os políticos, claro, batem em prudente retirada assim que vislumbram no horizonte os três cavaleiros do Apocalipse: corrupção, Ministério Público e “Correio da Manhã”. Não admira, pois, que nesta querela em volta da composição do CSMP, o grande argumento in terrorem dos defensores da actual composição corporativa do Conselho seja o de saírem por aí a gritar aos quatro ventos e às redes sociais que “os políticos” querem travar o combate à corrupção e controlar o Ministério Público. E, então, os políticos fogem e a imprensa dobra-se.
E quando isso sucede, quando um contrapoder se demite de vigiar outro poder, este fica sozinho em praça e dita as regras do jogo. O final nunca é feliz: lembrem-se de Baltazar Garzón ou de Sérgio Moro e de todos os que se acham justiceiros. Sem freio, começam por sacrificar o Estado de direito, as liberdades e garantias individuais, para o que juram ser apenas o combate à corrupção. E, podendo, acabam por sacrificar a democracia para “moralizar” a política. Com o apoio popular, pois claro. Mas não, não há fadas boas.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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