A exibição pela SIC, com som e imagem, de alguns dos interrogatórios
feitos a Sócrates – os quais apareciam como excertos mutilados do seu contexto
e sequência – deu origem a uma fascinante experiência cognitiva e social.
Independentemente da licitude, moralidade e intenções dos seus responsáveis
editoriais, o resultado seguramente imprevisto do voyeurismo mede-se pelo
alarme e confusão provocados nos broncos, nos fanáticos e nos pulhas. O pânico
foi tal que se chegou a acusar a SIC de estar a fazer um favor a Sócrates. Que
estava a acontecer?
Estava a acontecer algo que broncos, fanáticos e pulhas não
controlavam, por ser antropológico: o que viam deixava-os com a convicção de
que Sócrates era inocente. Aqueles traços caricaturais que durante anos
serviram para o seu assassinato de carácter, isso de ser pintado como arrogante
e irascível, estavam agora a servir como informação, como sinal, de ter razão.
Ter razão para protestar, para se indignar e até para se enfurecer ao ponto de
perder a cabeça e insultar as autoridades. Aquele homem que falava sem se
rebaixar com os seus interrogadores não parecia ter nada a esconder, nada de
que se envergonhar. Pior, aquele homem desafiava os acusadores a provarem as
suspeitas, coisa que não vimos nos vídeos seleccionados. Esta imagem não é
conciliável com a do Sócrates desvairadamente criminoso que não poderá escapar
da choça dada a montanha de provas. Dissonância cognitiva instalada, a única
solução era matar o mensageiro. A SIC, que sempre fez um jornalismo sectário e que
tem participado activamente na caça a Sócrates, tinha vindo em socorro do
engenheiro. É assim o pensamento mágico, faz magia.
As cadeias estão cheias de inocentes, reza a frase feita que alude à
frequência com que os condenados continuam a reclamar a sua inocência. Também
sabemos que é possível enganar os polígrafos. Um criminoso poderá parecer
perfeitamente convincente no papel encobridor que escolher representar perante
terceiros, a história policial e judicial está cheia de exemplos de todos os tempos
e feitios. É o instinto de sobrevivência. Logo, para se apurarem os factos em
causa nas acusações a Sócrates a sua emotividade e linguagem corporal, a sua
atitude e argumentação, a sua voz e as reacções dos advogados, tudo isso é
irrelevante para responder à pergunta: se foi corrompido, onde aconteceu e como
aconteceu? Aparentemente, e nisso o “Face Oculta” e o modo como se condenou
Vara serve de exemplo, poderá não ser necessário à Justiça portuguesa responder
a essa pergunta para despachar uma condenação por “prova indirecta”. Tomando a
Cofina como representante do Ministério Público de Joana Marques Vidal e
Rosário Teixeira, a que se junta o juiz Carlos Alexandre, então uma das
conclusões da exploração mediática da “Operação Marquês”, assim como da elaboração
da acusação, é a de que não há realmente qualquer prova de corrupção. Dito de
outro modo, seis meses depois de ter sido lançada a acusação, com dezenas,
centenas ou milhares de pessoas a estarem a ler ou já terem lido esse colosso
judicial, ainda não foi publicada qualquer prova (Bataglia não prova, apenas
indicia, apresenta uma versão que continua a carecer de prova).
Sócrates é vítima de criminosos no Ministério Público e na comunicação
social. A sua exaltação, que não é falha de carácter mas traço de
personalidade, também vai aí buscar ímpeto e gana. O que vimos nos fragmentos
das entrevistas confirma o que saía no esgoto a céu aberto logo no dia a seguir
aos interrogatórios. O MP nada mais tinha na mão do que os envios de dinheiro
para Sócrates por Carlos Santos Silva. Estes são factos. Porém, os mesmos não
atestam a sua inocência ou culpabilidade. Ele poderá, no campo das
possibilidades, vir a ser condenado sem margem para dúvidas. À mesma, nesse
desfecho, terá sido vítima de criminosos no Ministério Público e na comunicação
social. Ontem, pela primeira vez para muitos, foi possível sentir empatia pelo
cidadão e pela pessoa que resiste isolada no mais odioso processo de ataque
político de que há memória viva. Não sei se a SIC vai transmitir os interrogatórios
de mais alguém, se até começará a transmitir execuções de condenados à morte em
directo ou diferido. Sei que escreveram direito por linhas muito tortas.
Do blogue (Aspirina B)
Sem comentários:
Enviar um comentário