De "especial complexidade", dizem. Bom, como discordar? Provar
que a terra é plana é de especial complexidade. Provar a quadratura do círculo
coloca igualmente um problema de especial complexidade. As provas no Processo
Marquês são também de especial complexidade , pela razão de que é impossível
provar o que nunca aconteceu.
O nosso código penal não se ocupa da especial complexidade deste tipo de
verdade material : será a terra plana? Mas não se esqueceu de prever a
possibilidade de haver especial complexidade em inquérito criminal - quando ela
é invocada os prazos duplicam. Todavia, mesmo com especial complexidade, a lei
fixa um prazo, a que chamou máximo, de inquérito (artigo 276 do Código de
Processo Penal). Este prazo tem, em qualquer circunstância e englobando já
todas as especiais complexidades possíveis, um limite superior de 18 meses. O
Processo Marquês dura há 45 meses e acaba de ser adiado pela sexta vez.
Prazos. A primeira pergunta a fazer talvez seja esta: em que área da
justiça precisamos de mais segurança e de mais certeza jurídica? Julgo que não
é preciso um excessivo espírito liberal para responder que é aquela em que está
em causa a liberdade - a área penal. Aí, entre o indivíduo e o Estado, só há um
poderoso: o que tem o monopólio do uso da força, o que pode prender e deter...
e, sei-o agora, também insultar. Parece, então, legítimo perguntar por que que
razão é esta a única área da justiça em que se pretende que os prazos -
garantias da decência do Estado e dos direitos individuais - sejam, como dizem,
indicativos? E, já agora, se são indicativos, eles indicam exatamente o quê?
Mistério. Na verdade, nada indicam e nada valem porque a verdadeira intenção é
justamente a de poder conduzir o inquérito sem respeitar prazo nenhum.
Prazos, de novo. Mas, afinal, porque é que estamos a discutir prazos? A
resposta sabem-na todos, porque tudo isto tem decorrido à frente de todos: só
estamos a discutir prazos porque o Ministério Público deteve, prendeu, promoveu
ele próprio uma formidável campanha de difamação e, ao fim de quatro anos de
inquérito, não apresentou nem as provas nem a acusação. Neste processo, o
Ministério Público exibiu despudoradamente uma das especialidades que vem
cultivando há décadas: promover covardemente - e criminosamente - campanhas de
difamação nos jornais, por forma a transformar a presunção de inocência em
presunção pública de culpabilidade. Não haver prazo nenhum ajuda a tal tarefa.
Prazos, ainda. Na verdade, nada disto tem que ver com nenhuma teoria da
justiça ou com qualquer procura de arbitragem entre valores jurídicos de
verdade material ou de direitos individuais - isto tem apenas que ver com
poder. O poder do Ministério Público. Ao pretender que no inquérito penal não
haja, na prática, prazos obrigatórios, o Ministério Público não está a
interpretar a lei mas a mudar a lei. Acontece que essa é uma competência da
Assembleia da República, não é dos senhores procuradores: esse poder não é
legítimo, é usurpado.
Ouço por aí dois argumentos, ambos tão deploráveis, que não resisto a
dizer, com a brevidade possível, alguma coisa sobre eles. O primeiro corre no
essencial assim: bom, agora é que isto tem de ir até ao fim. Se a questão é a
corrupção e a política, então tudo deve ser válido em nome desse combate,
incluindo insultar, denegrir e humilhar quem está inocente. O que isto quer
dizer é basicamente que, se violaram os meus direitos individuais, paciência,
agora é preciso violá-los ainda um pouco mais. No fundo, a mesma e velha ideia
de que os fins justificam os meios, como se a corrupção dos meios não
corrompesse também os fins. O código penal que o Ministério Público está a usar
no Processo Marquês não é o da República Portuguesa, mas o "código penal
do inimigo." A sua lógica não é a do Estado de direito, mas a do conflito
radical .
Outros dizem, piedosamente, que se deve respeitar a presunção de inocência
mas que nem por isso deixam de ter as suas convicções. A presunção de
inocência, portanto, como formalidade jurídica. Mas ela é muito mais do que
isso, ela constitui um princípio moral estruturante das relações sociais numa
comunidade decente. Os que assim procedem sabem bem o que estão a fazer e quem
estão a ajudar - quem quer condenar sem julgamento e, já agora, condenar
negando sequer o elementar direito a conhecer a acusação. Para isso, a
inexistência de prazos é também muito conveniente.
O Processo Marquês nunca foi uma investigação a um crime, mas a perseguição
a um alvo. Ele tem 45 meses de inquérito e, dizem, 32 funcionários a trabalhar,
entre polícias e procuradores. Há muito que deixou de ser um inquérito para se
transformar num departamento estatal de caça ao homem.
No DN
* Antigo Primeiro Ministro
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